Cultura

Scorsese ou o elogio da curiosidade

Agora que está a chegar o novo filme de Martin Scorsese, “Assassinos da Lua das Flores”, vale a pena lembrar que ele é também um notável pedagogo sobre uma tarefa que importa ser valorizada: a arte de ser espectador.

Lily Gladstone e Martin Scorsese durante a rodagem de "Assassinos da Lua das Flores"

João Lopes

Falta pouco para os espectadores portugueses poderem descobrir o mais recente e admirável filme de Martin Scorsese: “Assassinos da Lua das Flores” tem estreia marcada para 19 de outubro e ficará, por certo, como um dos títulos fulcrais do ano de 2023. Sem esquecer que todos os oráculos da indústria de cinema dos EUA confluem na previsão da sua grande notoriedade na “temporada dos prémios”.

Esta saga sobre a tribo Osage, na década de 1920 — quando alguns dos seus membros começaram a ser assassinados, suscitando uma investigação oficial que seria o capítulo fundador do FBI — confirma o empenho de Scorsese em revisitar algumas memórias da história do seu país capazes de dar conta da complexidade, dos contrastes e contradições da sua identidade colectiva. Lembremos apenas o exemplo emblemático de “Gangs de Nova Iorque” (2002).

Recentemente, na edição da revista “Time” com data de 9 de outubro, Scorsese foi personalidade em destaque através de um magnífico ensaio/entrevista assinado por Stephanie Zacharek. Para lá do enquadramento pessoal e profissional do projecto de “Assassinos da Lua das Flores”, ele evoca alguns episódios que marcaram a sua evolução, antes de ser cineasta, quer dizer, enquanto espectador — são episódios que justificam o título do texto: “O Rei da Curiosidade” (aludindo ao seu filme de 1982, “O Rei da Comédia”, uma das mais brilhantes, e também mais desconcertantes, composições de toda a carreira de Robert De Niro).

Uma das suas memórias envolve a ida ao cinema, com a sua tia Mary, para assistir a algo que a maior parte dos espectadores do século XXI nunca conheceu: uma sessão dupla (“double bill”, segundo a gíria norte-americana). Assim, Scorsese tinha apenas 6 anos quando, numa dessas sessões, viu sucessivamente “Bambi” e “Out of the Past”, o primeiro de 1942, o segundo de 1947 (entre nós apelidado “O Arrependido”).

Que elementos podem ligar o clássico de animação de Walt Disney com “Out of the Past”, também um clássico, mas bem diferente, exemplo modelar do cinema “noir” da década de 40? Pois bem, apetece dizer que aquilo que os liga são, justamente, as suas infinitas diferenças.

Dito de outro modo: Scorsese atribui especial valor ao facto de a sua educação cinéfila ter sido, não um consumo rotineiro dos filmes apoiados pelas campanhas mais poderosas (embora muitos desses filmes sejam também essenciais na sua formação), mas sim toda uma dinâmica de descoberta de projectos muito diversificados — pelos temas, pelas narrativas, pela lógica de espectáculo. Para ele, há também uma forma de literacia que decorre da nossa capacidade para lidar com o mundo imenso das imagens (e sons). Vale a pena escutá-lo neste video de 2012 explicando, precisamente, o que é isso de literacia visual.

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