Cultura

Simone é liberdade e até podia ser rock’n’roll   

Dona de uma voz inconfundível, Simone de Oliveira cantou, fez locução, rádio, escreveu em revistas, fez comédia e revista. Teve uma vida cheia. E encheu muitos palcos. Por isso, diz que agora tem a obrigação de ser feliz. Uma entrevista à mulher que quer “deixar um perfume bonito no ar”.

Cristiana Reis

Aos 84 anos, Simone de Oliveira é a voz da 9ª edição do Rock in Rio Lisboa. A artista leva ao recinto uma mensagem sobre saudade – mas também sobre esperança – agora que, quatro anos depois, é possível voltar a realizar o festival.

Simone nunca tinha ido à Cidade do Rock, não tinha tempo, mas na estreia na Bela Vista, que aconteceu no primeiro dia, subiu ao Palco Mundo.

Foi, é e será sempre uma figura relevante da história da Cultura em Portugal. Estivemos na sua casa que apelida de “pombal”. Não é muito grande, mas os limites do espaço não balizam a quantidade de memórias que ali guarda.

Vive sozinha há 27 anos, “desde que morreu o Varela”. O ator e encenador Varela Silva foi o segundo marido da artista e o grande amor da sua vida. Sem ele, há muito que mantém as mesmas rotinas. Conta que é notívaga, que não se consegue deitar às dez da noite.

Nos últimos tempos, tem sido uma “ótima” espectadora de televisão. “Vejo tudo o que é telenovela”, admite.

Simone é uma espécie de mulher furacão. Porque esteve sempre pronta para ultrapassar as adversidades da vida (e o destino bem a testou), porque se manteve sempre fiel aos valores em que acredita e, por isso, sempre disse o que pensava… sem medos; é de palavra fácil, uma contadora de histórias nata – das suas e dos outros; é generosa. Tem noção da quantidade de entrevistas que já deu e tenta, ao longo da conversa, dar-nos algo que ainda não tenha contado. É difícil. A vida pública sempre foi muito pública e a pessoal… não ficou na esfera privada. Ainda assim, sem darmos conta, estivemos mais de uma hora a falar.

Não foi preciso muito para concluir que Simone é liberdade e podia ser do rock.

Liberdade & Rock

Simone assume que vive no agora. Diz que o passado “foi muito bonito, foi extraordinário”, mas não se lamenta.

“É uma frase do Varela: Eu tenho uma saudade lavada: não é fácil aceitar a velhice… uma pessoa com 84 anos é velha. Eu não sou é velha por dentro… gerir isso, às vezes, é difícil”.

Para trás ficam os maus tratos que sofreu no primeiro casamento, as relações que não deram certo e o sofrimento que lhe trouxeram, a perda dos pais, o amor por Varela Silva e o momento em que ficou sem ele, a vitória no Festival da Canção, a perda da voz, o cancro.

Não se deixou ficar nem definir pelos acontecimentos e, apesar de não ter sido o género musical que escolheu, a verdade é que a forma como vive faz Simone ser do rock. E é fácil de perceber o motivo. Se procurarmos a definição de rock, encontramos: “estilo de música popular surgido nos Estados Unidos da América na década de 1950, caracterizado pela batida e ritmo fortes, (…) e frequentemente associado a um espírito rebelde e juvenil”.

Sempre despertou muita curiosidade. Até nas vizinhas. Recorda a época em que viveu em Alvalade.

“Tinha uma vizinha que, entrasse eu [em casa] às 2, às 3, às 4 ou às 5 da manhã…ela levantava a cortinazinha da cozinha para ver. Eu via-a várias vezes. Um dia fiz-lhe um manguito”.

Livre nas escolhas e nas palavras, é também assim que é vista pelos seus. Numa das paredes da sala tem um quadro pintado pelo neto Gui que a representa. Conta que ele disse à mãe que queria pintar uma coisa para a avó, mas não sabia o quê. “A tua avó é liberdade. E ele achou que aquela paisagem infinita do Alentejo seria eu.”

“Quem faz um filho, fá-lo por gosto”

Estreou-se como cantora à frente do grande público no primeiro Festival da Canção, em 1959. Foi a quarta escolha para cantar o poema da autoria de José Carlos Ary dos Santos, com música de Nuno Nazareth Fernandes, orquestração do maestro Joaquim Luís Gomes e direção de orquestra de Ferrer Trindade.

Dez anos depois, venceu, pela segunda vez, o Festival RTP da Canção com “Desfolhada Portuguesa”. Foi com este tema que, depois, representou Portugal no Festival da Eurovisão, em Madrid. No final desse ano, perdeu a voz.

“Não canto em casa”

Com 65 anos de carreira, Simone está, naturalmente, mais habituada a cantar para os outros.

Há 27 anos sozinha no seu “pombal”

Simone vive na mesma casa há 47 anos. Hoje, é praticamente só a partir dali que vê o Mundo. Com o ponto final na carreira, não tenciona viajar mais. Quer ter mais tempo para os netos e para ver televisão, nomeadamente, para ver “a FOX Crime”.

Das memórias que tem naquele espaço diz: “aqui se riu, aqui se chorou, aqui se fizeram Natais, aqui morreu o Varela”. E acrescenta “a casa não estava assim…depois da morte dele modifiquei-a toda para poder ser menos dura a ausência dele.”

Para sentir a presença do companheiro ainda deixa um candeeiro sempre aceso. Porque quando Varela Silva estava muito doente e Simone saía para trabalhar, ele pedia: “deixa-me uma luz”.

Gosto da Beyoncé

Uma das principais referências na música, é Charles Aznavour. “Eu tenho paixão pelo Aznavour. Paixão total e absoluta”. E conta um episódio que justifica a admiração. Simone diz que tem o DVD do último concerto do cantor francês, que foi feito quando ele tinha 90 anos.

“Ele entra no palco e diz: eu já não tenho a mesma voz, já não vejo como via, já não oiço como ouvia… portanto, as letras estão aqui à frente”. “Acho que é preciso ser um grande ser humano e um grande profissional para ter a coragem e a dignidade de dizer isto”.

Nomeia também, como referências, o belga Jacques Brel, Barbara Streisand e Shirley Bassey. E ainda pisca o olho a nomes mais recentes. “Gosto da gente de agora. Gosto da Beyoncé! Acho a Beyoncé uma coisa… Nossa Senhora!… do arco da velha!”. E também há “gente portuguesa a cantar muito bem. Toda a gente sabe que eu adoro a Mariza, o FF, o Camané…”

“A ideia era eu aprender para ser candidata ao Parlamento Europeu”

Atenta ao que se passa no País e no Mundo, Simone revela que chegou a ser convidada para entrar na política.

A despedida: “O que é que eu quero mais?”

A resposta não deixa margem para qualquer dúvida. O adeus à vida artística é definitivo.

“Vamos acabar bonito, bom, com a cabeça no sítio, com a voz boa, com a apetência de ainda dizer as palavras, de ser capaz de ter uma conversa. Vamos sair pela porta larga. Prefiro deixar um perfume bonito no ar.”

Simone conta que uma das preocupações é não “fazer rídidculos”. Por isso, foi pedindo às pessoas mais próximas para se manterem atentas e a avisarem, caso ultrapassasse uma linha que não quer, sem se aperceber. Será, também, o fim da carreira de atriz.

“Eu tenho lá pachorra para meter textos na cabeça a uma hora destas… deixem-se acabar bonito, deixem-me ser feliz à minha maneira. Eu tenho a obrigação de ser uma mulher feliz.”

Ao deixar os palcos, os platôs, não fica com nenhuma frustração. “Fiz locução, fiz rádio, escrevi em revistas, fiz comédia, fiz revista, trabalhei com o Ribeirinho, fiz tanta coisa… Trabalhei nos teatros todos, de norte a sul… o que é que eu quero mais?”

E foi assim que, aos 84 anos, Simone de Oliveira decidiu terminar a vida artística. Para se despedir do público, deu, no passado dia 29 de março, um concerto no Coliseu de Lisboa. Os bilhetes para o espectáculo esgotaram. O Presidente da República esteve presente e, à margem, tinha prometido condecorar a cantora.

A promessa foi cumprida no dia 27 de maio: Simone de Oliveira foi distinguida com a grã-Cruz da Ordem de Mérito.

Últimas