No dia Mundial Contra o Cancro, a OMS revela o impacto catastrófico da pandemia no tratamento do cancro. "O impacto da pandemia sobre o cancro no continente europeu é catastrófico", disse o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS) na Europa, Hans Kluge.
Entre os 53 países da região (incluindo vários países da Ásia Central), um em cada três interrompeu, parcial ou totalmente, os seus serviços oncológicos por causa da mobilização contra a pandemia e das restrições de viagens. Uma questão que preocupa todos os especialistas visto que o cancro, a diabetes e as doenças respiratórias crónicas são responsáveis por mais de 80% das mortes a cada ano.
"A sociedade civil, os doentes com cancro, os sobreviventes de cancro, familiares e cuidadores têm um papel importantíssimo a desempenhar. Não podem desistir, baixar os braços, e ficar à espera que os outros atuem", refere Ana Raimundo, presidente da SPO.
A especialista acredita que os doentes devem ser interventivos e exigentes, ao defender que "não podem ficar à espera de que as autoridades de saúde, profissionais de saúde ou outras entidades oficiais desempenhem o papel que cabe aos interessados".
Neste período, a Europa atravessa um momento delicado no que ao combate ao cancro diz respeito e, por isso mesmo, apresentou um plano europeu que tem como objetivo ser implementado em todos os Estados-Membros, onde Portugal se inclui.
Tendo em conta este cenário adverso, quais são os desafios para os tempos que se avizinham e em que áreas se deve apostar mais, segundo os especialistas?
Mais literacia em saúde
Aumentar o conhecimento sobre saúde junto da população, visto que 40% dos casos de cancro são evitáveis, é dos principais focos, fomentado hábitos de vida mais saudáveis. "Vivemos num país pobre, em que muitos doentes não têm dinheiro para comer com qualidade ou comprar medicação na farmácia. Não tem conhecimento, nem possibilidade de adotarem os estilos de vida saudáveis. A doença é mais é mais um problema que vem agravar as outras dificuldades", sublinha Ana Raimundo.
Nuno Jacinto, presidente da APMGF, diz que se tem que "aumentar a eficácia" quando se passa a mensagem de que é necessário alterar estilos de vida e mesmo, visto que "nos rastreios organizados e consensuais também temos dificuldades de adesão, pelo que importa alterar estas realidades de modo a obtermos efetivos ganhos em saúde".
Para Tamara Milagre, presidente da EVITA a prevenção do cancro hereditário deve ser uma prioridade, visto que 10% dos cancros tem esta origem. "Quem não sabe da sua mutação genética, será cedo surpreendido pelo cancro hereditário pois a nossa faixa etária ainda não tem idade para entrar nos rastreios populacionais", explica Tamara Milagre, que gostaria de ver esta temática mais abordada no Plano Europeu de Combate ao Cancro. Para combater a desinformação e aumentar a prevenção, a associação está a construir a Plataforma EVITA, um registo para portadores de mutação genética que vai incluir ferramentas digitais e trabalhar com inteligência artificial, dando assistência de múltiplas formas. O objetivo desta iniciativa é que os doentes "nunca mais se sintam sozinhos".
Retomar rastreios
Os três rastreios implementados em Portugal : mama, colo do útero e colorretal estiveram parados durante os meses mais críticos da pandemia. Para Vítor Neves, presidente da Europacolon Portugal a retoma é uma das prioridades, dado que a inexistência de rastreios trará consequências nefastas e impacto na mortalidade. "Os mais de 50 mil diagnósticos anuais que, em média, se faziam em 2019, deixaram de acontecer. A maioria dos diagnósticos aparecem nas urgências hospitalares quando os utentes em crises agudas recorrem a estes serviços", sublinha o representante desta associação de doentes.
Tamara Milagre é da mesma opinião ao afirmar que "o abandono total dos rastreios vai ter uma manifestação catastrófica no futuro próximo". A presidente da Evita acredita que o mais importante é "reforçar a prevenção, pois não faz muito sentido gerar cada vez mais doentes para tratar".
Recuperar funcionamento dos cuidados de saúde primários
O funcionamento normal dos centros de saúde é fundamental para o diagnóstico precoce. Os médicos de medicina geral e familiar prescrevem exames e análises e reencaminham os doentes para as consultas de especialidade. Estando focados apenas no combate à pandemia, um doente que apresente os primeiros sintomas pode neste momento ter de esperar meses até ter a sua consulta. "Na área da oncologia, como em tantas outras, é absolutamente crucial que existe uma verdadeira integração de cuidados, centrada no doente e bidirecional, baseada numa articulação plena entre os cuidados primários e os cuidados hospitalares", esclarece Nuno Jacinto.
O especialista garante que os médicos de família estão totalmente disponíveis para construir uma solução para que, "em conjunto com os colegas oncologistas, encontrarem as respostas que melhor sirvam as necessidades dos seus doentes".
Investir no Cancro pediátrico
Em Portugal surgem cerca de 400 novos casos de cancro pediátrico, por ano. Um número que merece toda atenção, uma vez que, segundo Margarida Cruz, diretora-geral da Acreditar, ainda há muito caminho a percorrer nesta área. A associação partilhou com o "Tenho Cancro. E depois?", algumas das principais questões que precisam de rápida resolução:
1 . É preciso que a pediatria vá até aos 18 anos em todos os serviços de pediatria oncológica. Isto está consagrado na lei há muitos anos e ainda não é uma realidade.As melhores práticas nesta área indicam que o sucesso de tratamento desta população é maior quando está integrada em alas de pediatria, as quais permitem um acompanhamento mais personalizado e uma presença mais efectiva e próxima de cuidadores e de especialistas em pediatria (nas diversas áreas : médica, psicologia, psiquiatria , apoio social , escolaridade).
2. É fundamental conhecer os números atuais da pediatria, em todo o pais, nas subdivisões e categorias internacionalmente aceites (sobretudo no que à europa diz respeito). É difícil (impossível) planear o que se conhece mal e será determinante que Portugal tenha números actuais para poder participar em estudos europeus, a promover no âmbito do novo plano europeu para a área do cancro;
3. É muito importante realizar estudos e investigação, que abranja todas as disciplinas e que estude o cancro no adolescente e no jovem adulto. As taxas de menor sucesso no tratamento desta população têm levado a estudos multidisciplinares e adopção de soluções que podem melhorar o sucesso dos tratamentos, para já não falar do apoio emocional, psicológico e social a esta população, que é tão distinta, quer da pediátrica, quer da do adulto. A Acreditar iniciou um estudo nesta área e está aberta a que mais parceiros se juntem, para lhe dar consistência e sustentabilidade bem como uma maior adesão às conclusões do mesmo.
4. É fundamental que a investigação na área da pediatria seja fomentada a nível nacional com a participação em ensaios clínicos. Para o fomento da investigação será determinante que os investigadores, sobretudo quando em funções em hospitais, tenham tempo dedicado à investigação.
5. Será um passo decisivo para todos os sobreviventes de cancro que a Lei do Esquecimento, já em vigor noutros países europeus, seja estudada e implementada em Portugal. Também aqui a Acreditar está a fazer o estudo adequado e necessário, mas vai ser determinante o envolvimento da classe política e dos cidadãos, para que esta passe da utopia à realidade.
Garantir equidade no acesso e investir em inovação são outros dos desafios apontados pelos especialistas e associações de doentes - cujas opiniões são de importância extrema, devido à proximidade que têm com os doentes e à consciência das dificuldades inerentes à sua condição. "As associações de doentes oncológicos querem ser ouvidas na definição do próprio Plano Europeu e consequente Plano Nacional de combate ao cancro. O nosso apoio e participação, dado o nosso conhecimento, no terreno, e da realidade dos cuidados de saúde é imprescindível", conclui Vítor Neves.
Dia Mundial Contra o Cancro
Apesar dos grandes desafios que a oncologia nacional enfrenta, médicos e especialistas deixam uma mensagem de esperança a todos os doentes, familiares e cuidadores, visto que "os tratamentos são cada vez mais, e mais eficazes, aumentando as taxas de sucesso e cura", lembra Ana Raimundo.
No entanto, alertam que acreditar é importante, mas não chega. "É preciso Acreditar na cura, na eficácia dos tratamentos, no futuro de cada doente como cidadão de pleno direito. Mas não podemos ficar pela esperança, temos de nos juntar para um trabalho conjunto", sublinha Margarida Cruz.
Em representação dos médicos de famíla, Nuno Jacinto dirige-se aos doentes dizendo que estes continuarão "disponíveis para o que for necessário, desde intervenções mais complexas a uma simples troca de palavras num momento de maior dificuldade. Também aqui queremos continuar a ser médicos de família por inteiro e não apenas médicos de pandemia".
Por último, Vítor Neves, deixa o apelo: "Aos doentes oncológicos, cidadãos únicos, nesta fase com sofrimento muito acima do inevitável, apelamos para a criação da sua própria intervenção nas terapêuticas individuais. Não deixem de estar presentes nas convocatórias para consultas e tratamentos. A Europacolon Portugal, continuará sempre ao dispor da população".
Expetativas para a implementação do Plano Europeu de Combate ao Cancro
"O Plano Europeu é realmente muito ambicioso, com indicadores definidos a atingir, e com múltiplos ângulos de ataque e grupos de trabalho. Penso que nos próximos anos assistiremos a uma revolução nos cuidados oncológicos na Europa"
Ana Raimundo, presidente da SPO
"O Plano Europeu de Combate ao Cancro que recentemente entrou em vigor é bastante ambicioso e por isso as expectativas são altas. Este programa advoga uma forte aposta na prevenção e no diagnóstico precoce, bem como na promoção da qualidade de vida, áreas de excelência em que a Medicina Geral e Familiar pode e deve intervir"
Nuno Jacinto, presidente da APMGF
"As expetativas são sempre altas, pela nossa parte - associações de doentes - , mas estamos a viver tempos muito difíceis e não sei até que ponto o cancro terá o seu devido destaque"
Tamara Milagre, presidente da EVITA
"A implementação do Plano Europeu de Combate ao Cancro, nas suas várias vertentes, é uma possibilidade única dos decisores europeus em saúde poderem abordar a diminuição da mortalidade, a incidência e o aumento de qualidade de vida dos cidadãos europeus"
Vítor Neves, presidente da Europacolon Portugal
"A nossa expetativa é a de que, com a implementação do Plano Europeu, a luta contra o cancro tenha um novo impulso, sobretudo tão necessário numa época em que todas as doenças, não sendo o cancro uma excepção, têm sido colocadas em segundo plano"
Margarida Cruz, diretora-geral da Acreditar