Alimentação e Nutrição

A importância do aleitamento materno (2/2): as táticas da indústria do leite

Opinião de Tiago Correia. A indústria do leite que produz fórmulas para lactentes tanto representa uma solução como é parte de um problema.
Carlos Garcia Rawlins

Tiago Correia

A indústria do leite que produz fórmulas para lactentes (fonte única de alimentação para bebés até aos seis meses de vida) e de transição (alimentação complementar a partir dos seis meses de vida) tanto representa uma solução como é parte de um problema.

É esta a posição da OMS perante uma área de negócio cujas receitas anuais acima de 50 mil milhões de euros vão muito além das necessidades de saúde das crianças. Esta mensagem foi recordada na Semana Mundial do Aleitamento Materno, sinalizada entre 1 e 7 de agosto, e complementa a preocupação com a proteção laboral das mães para manterem a amamentação até aos 2 anos de vida da criança.

É verdade que a indústria do leite, como qualquer área de investigação e inovação em saúde, requer um elevado financiamento e muitas tentativas frustradas até introduzir no mercado produtos de alta segurança, qualidade e que garantam a saúde e bem-estar. Isto é ainda mais verdade no caso de recém-nascidos e bebés, por serem grupos especialmente vulneráveis.

Também é verdade que a indústria do leite tem sido cada vez mais pressionada a reconhecer que o aleitamento materno é a melhor e deve ser a única fonte de alimentação.

No entanto, são conhecidas as táticas de marketing destas empresas para expandir o mercado além dos casos em que a substituição do leite materno é uma alternativa necessária. Alguém acredita que o facto de 60% das crianças na Europa iniciar o leite artificial antes dos seis meses de vida se deve a problemas de saúde?

Uma tática é de comunicação e passa por convencer os pais sobre três coisas. Uma, é que comportamentos como chorar, agitação ou falta de sono são situações anormais, evitáveis e que algo de errado se passa. A segunda é que a fórmula vendida irá resolver esses problemas. A terceira é a promessa de reforço da imunidade e do desenvolvimento cerebral dos bebés pela introdução de novos compostos nas fórmulas.

Estas ideias colocam problemas científicos e éticos. Tanto quanto se sabe, aqueles comportamentos continuam a ser interpretados como saudáveis, normais e adequados à fase de desenvolvimento dos bebés. Claro que cada caso é um caso e deverão ser os profissionais de saúde juntamente com os pais a perceber a fronteira entre chorar ou estar agitado como parte de um comportamento normal ou enquanto sintoma de alguma complicação.

Como se percebe, é necessária uma avaliação clínica e não se pode prometer que uma fórmula específica de leite permita a qualquer bebé deixar de chorar, estar agitado ou passar a dormir. Pior ainda, prometer o reforço artificial da sua imunidade ou do desenvolvimento cognitivo.

Outra tática é comercial e passa por criar gamas de produtos. Muitas vezes sem alterar qualquer composto ou procedendo a alterações insignificantes, as marcas fidelizam os pais durante o crescimento da criança. Uma vez mais, por certo haverá casos em que determinadas gamas de produtos se adequem a situações específicas. A crítica é usar este princípio como regra aplicável a todos os bebés e durante toda a fase de crescimento até aos dois anos.

A defesa do melhor interesse dos bebés, dos pais e, em última análise, dos sistemas de saúde levou a que a OMS tivesse criado em 1981 um código internacional de conduta para o marketing destes produtos, que inclui a proibição de publicidade em hospitais e centros de saúde, de distribuição de amostras às mães ou de anúncios por parte de associações científicas e profissionais.

Passados 40 anos, apenas 32 países adotaram medidas consistentes com o código, 41 países apresentam medidas pontuais e em 50 países não houve progressos dignos de registo. Dados de 2022 mostram que Portugal está no grupo de países com medidas pontuais, obtendo 32 pontos em 100 possíveis. Muito está por fazer para proteger os princípios do aleitamento materno no nosso país.

A falta de coragem política para enfrentar mais este determinante comercial na saúde – a par do tabaco e do álcool – demonstra a falta de entendimento de que o aleitamento materno deve ser uma preocupação de saúde pública, além de que as mães continuam expostas a estímulos negativos que desincentivam o aleitamento.

No fundo, vive-se a transformação da experiência da amamentação. Algo que é desafiante, mas necessário e natural passa a ser indesejável e substituível. Não é um jogo limpo porque comportamentos normais dos bebés são deturpados e resultados que não têm a devida fundamentação científica são prometidos em momentos emotivos e de elevado stress.

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