Porque é que será que gostamos mais de determinada personagem? E porque é que a outra nos irrita? Ou até...porque é que sentimos que o livro que estamos a ler nos está a fazer bem? As histórias contadas nos livros podem ser terapêuticas e é aqui Sandra Barão Nobre, biblioterapeuta, atua.
"Nós procuramos explorar o caráter existencial que cada pessoa estabelece com as histórias. Nós pomos em marcha o potencial transformador dessas histórias. O grande objetivo é contribuir para o bem-estar, o equilíbrio e a qualidade de vida de qualquer pessoa", explica à SIC Notícias.
Se nunca ouviu sequer falar sobre biblioterapia, é normal. O tema ainda é muito desconhecido em Portugal, confessa Sandra, que lançou o livro "Ler para Viver: Como a Biblioterapia Pode Melhorar as Nossas Vidas" em abril deste ano, uma espécie de guia que serve de iniciação para o tema. É na sua mais recente obra que fala sobre a importância do diálogo no processo de biblioterapia.
"Não basta o diálogo do leitor com o texto. Não basta o diálogo do leitor consigo mesmo", aponta a autora, referindo que o biblioterapeuta pode funcionar como um mediador que ajuda "a extrair aquilo que importa para orientar a pessoa a atingir os seus objetivos.
Para Sandra, o papel do biblioterapeuta vai além da simples recomendação de livros: acredita que é no diálogo com o outro que se ganham novas perspetivas sobre os textos, fomentando o surgimento de interpretações até ali desconhecidas.
"É nesses momentos de diálogo que às vezes, até mesmo pelo que é do outro, ou seja, às vezes são as palavras dos outros que me ajudam entender melhor o texto, melhor história e entender melhor a mim mesma", acrescenta Sandra.
Formada inicialmente em Relações Internacionais, o caminho rumo à biblioterapia começou de forma inesperada: o interesse foi aguçado por um artigo, mas em Portugal havia pouca informação sobre o tema. Determinada a preencher a lacuna no mercado português, Sandra mergulhou em estudos e pesquisas autodidatas. Em 2016, fez uma formação de Biblioterapia para a Infância e Juventude na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto, seguindo-se depois uma Pós-Graduação em Biblioterapia e Mediação da Leitura Literária na Universidade Comunitária da Região de Chapecó, no Brasil.
Sandra sempre foi uma leitora ávida, tendo já levado os livros da sua "farmácia literária" aos quatro cantos do mundo, uma experiência que resultou na publicação da obra"Uma Volta ao Mundo com Leitores", em 2017. E há bons motivos para sorrir no que diz respeito a hábitos de leitura.
O mercado editorial tem dados sinais encorajadores: as novas gerações estão a ler mais. Embora o setor tenha enfrentando desafios durante a pandemia, a leitura entre os jovens está em ascensão, impulsionada em grande parte pelas redes sociais e pela influência digital.
Sandra reforça essa visão, destacando o papel crucial da família e dos influenciadores na promoção da leitura. "O que estes influenciadores estão a fazer é impactar um a um os seus seguidores, criando um efeito de mimetismo e contágio", explica, referindo que a forma cativante como os livros são apresentados nas plataformas digitais, como o Tiktok, despertam curiosidade nos mais jovens. Em 2021, após uma queda de 20% durante a pandemia de covid-19, o mercado livreiro cresceu cerca de 16%, uma "quase na totalidade" face aos anos pré-pandemia, revelou a da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, ao Expresso.
Têm os livros sido uma "terapia" para as novas gerações? Estudos recentes mostram como os jovens têm sido especialmente afetados com problemas de saúde mental. Um estudo de 2022, coordenado pela Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC), indica que os sintomas de depressão nos adolescentes voltaram a aumentar, afetando 42% dos inquiridos a nível nacional. As evidências mostram também que a leitura pode ajudar a promover uma sensação de bem-estar emocional através, por exemplo, da estimulação do cérebro, da melhoria do sono e da capacidade de compreensão.
De acordo com Sandra, que cita a um estudo sobre hábitos de leitura, "uma pessoa que leia regularmente vive, em média, mais dois anos". "Sabemos que a leitura regular tem benefícios cognitivos, ajuda a prevenir, por exemplo, a deterioração do nosso cérebro", aponta.
Mas como funciona a biblioterapia?
Sandra Barão Nobre explica que o primeiro passo é fazer uma primeira sessão, sem custo associado, que serve para traçar o perfil da pessoa, identificar as suas necessidades ou objetivos. É nessa abordagem inicial que Sandra esclarece que trabalha como biblioterapeuta de desenvolvimento, não se substituindo a profissionais de saúde.
"Se a pessoa me diz que acha que está deprimida, que tem uma fobia, que tem ataques de ansiedade, é fundamental que vá primeiro consultar um profissional de saúde e, só depois de um diagnóstico e de outro tipo de terapêutica, é que eu posso entrar com a biblioterapia como coadjuvante", declara a biblioterapeuta.
Depois de traçados os objetivos, é entregue uma lista de leituras, selecionadas pela biblioterapeuta. A pessoa compromete-se com uma primeira leitura e são estabelecidos alguns prazos para que o processo não se arraste no tempo. À medida que as leituras vão progredindo, são agendadas sessões.
A "farmácia literária": cinco sugestões de leitura
Nas páginas finais do livro "Ler para Viver: Como a Biblioterapia Pode Melhorar as Nossas Vidas", Sandra Barão Nobre deixa algumas recomendações que fazem parte da sua "farmácia literária". Desafiada a deixar cinco sugestões para os leitores da SIC Notícias, a biblioterapeuta "receita" as seguintes obras:
- A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstoi - "É um livro que ecoa e está comigo sempre. É um breve livro de ficção que abalou muito os meus alicerces"
- O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati - "É sobre a passagem do tempo. É também um livro de ficção. Sei, inclusivamente, que provocou logo mudanças muito concretas na vida de algumas pessoas que me são próximas. É um livro sobre a passagem inexorável do tempo, este tempo que nos mastiga e nos consome"
- A lebre de olhos de âmbar, de Edmund de Waal - "É um livro extremamente humano, de não ficção, que permite também compreender a história do mundo entre a I Guerra e a II Guerra Mundial e até ao final do século XX. É o relato de uma história de uma família contada a partir de um conjunto de objetos que vem do extremo oriente
- Tudo é Possível, de Kobi Yamada - "Para pessoas desesperançadas, pessimistas, há um livro infantojuvenil de um autor norte-americano. É um livro que transmite muita esperança e muita energia. É um livro fantástico que acho que estamos todos a precisar muito."
- Sabedoria, de Michel Onfray - "Este é um bocadinho mais exigente. É um grande livro de um filósofo que eu adoro. Faz um apanhado do estoicismo Romano, passando-o do plano mental e teórico para a prática do dia a dia. O autor pega nos vários estoicos para nos ensinar a viver melhor perante os desafios do século XXI: como lidar com amigos, como lidar com a morte, como lidar com relações amorosas. É um livro grande, mas não é um livro difícil. O autor tem muito sentido de humor e escrever de forma acessível. É para ir lendo devagar, ir sublinhando."