Carla Oliveira passou dois anos na incerteza. De médico em médico, em busca de um diagnóstico para as dores que “nem sabia muito bem explicar” e que surgiam “num dia num braço, noutro numa perna ou nas costas”.
Na altura era bancária – carreira que alimentou por 16 anos – e vivia rodeada de stress.
“Nunca parei de trabalhar, apesar das dores, mas houve dias muito difíceis e ninguém chegava ao diagnóstico correto. Um médico chegou a propor-me ser operada aos tendões”, recorda a agora administrativa, de 46 anos e natural de Mira.
O sofrimento e a dúvida tornaram-se uma constante na vida de Carla a partir de 2017 e rotinas tão simples como lavar a loiça ou até estar sentada à secretária eram um martírio. Só em 2019 teve, finalmente, o diagnóstico pelo qual esperava, sem sequer o saber.
“Nunca tinha ouvido falar de fibromialgia. Fui a uma consulta e o doutor escreveu a palavra ‘felicidade’ num papel grande e deu-mo. Foi tudo o que eu precisei”, conta à SIC Notícias.
Ainda assim, no banco onde trabalhava foi-lhe sugerido consultar o médico da instituição.
“Fui a essa outra consulta e mostrei-lhe o papel. O médico só disse que não tinha nada a acrescentar”, lembra Carla, que seguiu a receita à letra e passou de “ter crises de fibromialgia todos os meses, durante vários dias” para não se lembrar, sequer, da última.
“A fibromialgia alimenta-se do stress e morre na sua ausência”
A fibromialgia - cujo dia mundial se assinala esta sexta-feira, partilhado com a síndrome da fadiga crónica – é até oito vezes mais frequente em mulheres do que em homens. Pode surgir em qualquer idade, mesmo na infância, mas é mais comum entre os 20 e os 40 anos.
Por ser ‘invisível’ aos outros, há ainda muito a fazer para minimizar o sofrimento e o atraso no seu diagnóstico.
“É preciso compreender bem a fibromialgia porque, ao contrário da maior parte das outras doenças, não há nada de errado no corpo das pessoas que a têm. Sabemos que não há inflamação, nem desgaste, nem reumatismo, nem tumores. A origem de todos aqueles sintomas está fortemente relacionada com tensão nervosa”, explica à SIC Notícias José António Pereira da Silva, professor de Reumatologia na Universidade de Coimbra e diretor científico da plataforma Myfibromyalgia.org.
O médico que receitou ‘felicidade’ a Carla Oliveira não tem dúvidas de que “a fibromialgia alimenta-se do stress e morre na sua ausência”. Não se trata de uma doença mental, “mas a verdade é que os doentes se dão conta de que o stress é a principal causa de agravamento dos sintomas”.
Para Carla, qualquer pico de stress era uma sentença.
“Bastava passar por um momento mais stressante, o que na profissão de bancária acontecia com regularidade, que dali a dois ou três dias sabia que a fibromialgia ia atacar. E como tinha muitos momentos de elevado stress, as crises prolongavam-se por dias e dias”, descreve.
Mudar de vida à procura de “outros caminhos”
Carla, que já tinha visto a vida desafiá-la com um cancro do útero, não teve dúvidas.
“Percebi que tinha de mudar de vida, como já tinha tido aquele susto e mudei de trabalho, que foi o principal. Depois, fiz cursos de meditação, procurei coisas que me fizessem feliz. Tenho uma caixa de comprimidos em casa, mas nunca tomei nenhum”, afirma a administrativa.
A outros doentes deixa um recado: “Muitos pensam que a medicação é que resolve tudo, mas há outros caminhos, é preciso procurar a felicidade, cuidar de nós”.
O mesmo aconteceu com um jovem de 30 anos, estudante de doutoramento, que chegou à consulta do especialista Pereira da Silva com um quadro de dores generalizadas e um estado de exaustão permanente.
“Passava as noites em branco e acordava tão ou mais cansado do que estava ao deitar-se. Tomava vários medicamentos para a ansiedade, mas nada parecia resolver a situação”, recorda o médico.
Confirmado o diagnóstico, e percebida a sua ligação ao stress e ansiedade, voltou a ver o jovem meses mais tarde.
Uma “mudança radical” permitiu-lhe deixar os medicamentos para trás e, “ainda assim, diminuir drasticamente os sintomas”.
E a mudança não podia ter sido maior: “Não queria já ser doutorado, nem sequer historiador. Decidiu recuperar uma velha casa de família, dedicar-se à agricultura biológica e planear um pequeno hotel”. Anos depois do diagnóstico, “continua feliz com as decisões que tomou e praticamente livre de fibromialgia”.
Uma desconfiança “inadmissível” e direitos sociais por rever
Para o especialista, “o mais urgente” a fazer para apoiar os doentes de fibromialgia em Portugal passa por uma “sensibilização dos médicos e outros profissionais de saúde, mas também da população em geral para esta realidade, sublinhando a autenticidade dos seus sintomas e do sofrimento que lhe está associado”.
Esta desconfiança “leva a um inadmissível atraso de diagnóstico, com um acréscimo evitável de sofrimento e ainda a um aumento do peso da doença, em virtude da suspeição que a rodeia”, alerta Pereira da Silva.
“Urgente também seria aumentar a acessibilidade dos doentes com fibromialgia a cuidados por psicólogos sensibilizados e treinados para esta doença”, adianta, notando como relevante a “revisão do enquadramento dado à fibromialgia no que respeita aos direitos sociais de pessoas doentes”.
Além do mais, critica, nada “justifica a injustiça a que estes doentes estão expostos pela desconfiança sistemática a que a sua condição é votada pela Segurança Social”.
“Refiro-me não apenas à possibilidade de reforma antecipada por incapacidade, mas também aos esforços de adequação no posto de trabalho ao doente, ou do doente ao posto de trabalho”, conclui.