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Sabão humano na sala de aula

Opinião de Rui Correia, professor. O horror nazi não precisa de mentiras, mesmo que benignas e amáveis, para se consagrar às vítimas do Holocausto o lugar de reverência que ocupam na nossa memória. Para mentiras já bastam as que se repetem, as verdades que se silenciam e demais sabões.
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Rui Correia

Reichsstelle für Industrielle Fettversorgung, ou melhor: RIF. Estas três letras eram as iniciais que se encontravam nas barras de sabão do exército nazi. Indiferente ao facto de nessas iniciais haver um I e não um J, espalhou-se rapidamente a notícia de que RIF queria dizer: “Rein Judisches Fett” (pura gordura de judeu). Ou seja, os nazis estavam a fabricar barras de sabão feito com gordura e ossos humanos, extraídos de cadáveres judeus.

A história macabra tornou-se corrente em plena Segunda Guerra Mundial; cresceu de tal modo que havia relatórios oficiais de 1942 que alegavam que os alemães tinham usado gordura humana para produzir “sabão, cola e óleo para locomotivas”.

Sabemos que muitos polacos, ao ver passar os comboios apinhados de judeus a caminho dos campos de morte nazis, lhes gritavam: “Judeus para o sabão!”.

Provas da mentira

Nos julgamentos de Nuremberga os representantes soviéticos exibiram receitas nazis para o fabrico industrial de sabão humano. Uma testemunha, Sigmund Mazur, declarou em tribunal que, durante a guerra, se lavou muitas vezes com esse sabão, e que era de má qualidade.

Em 1948 quatro destas barras de sabão RIF, feitas a partir de restos humanos, foram emotiva e cerimoniosamente enterradas em Israel.

A história do “sabão humano” foi repetida por muitos políticos e estudiosos, incluindo o célebre “caçador de nazis” Simon Wiesenthal, conferindo-se assim credibilidade ao assunto.

Não é pequena a lista de referências académicas que confirmavam a produção de sabão humano pelos nazis. Só a partir dos anos oitenta é que começámos a ver reputados historiadores do Holocausto como Walter Laqueur, Gitta Sereny, Shmuel Krakowski, Aaron Breitbart ou Michael Berenbaum, entre outros, a desmentirem categoricamente o que nunca passou de uma sinistra falsidade.

Um rumor cruel

Não é verdade que alguma vez os nazis tenham feito sabão a partir de cadáveres humanos. Testes laboratoriais demonstraram a inexistência de ADN humano em qualquer uma das barras de sabão RIF. Não obstante, não foi fácil acabar de vez com este boato tão sinistro e popular.

Os historiadores do Holocausto sabiam que negar a veracidade da historieta dos sabões RIF, numa época em que os negacionistas procuravam argumentos para inflamar incoerentes e desatinadas discussões públicas, só iria encorajar os inimigos da verdade histórica. Mas mesmo assim, os historiadores recusaram continuar a alimentar a mentira e puseram os pontos nos iis.

A história teima em não morrer e ainda em 2020 foi publicado um novo artigo que volta a desmentir a impostura. Sabemos hoje que, afinal, se tratou sempre de um rumor cruel, e que nasceu na propaganda francesa anti-germânica da Grande Guerra de 1914-1918.

Serapilheira de cabelo

Quando visitamos Auschwitz-Birkenau, o mais conhecido dos seis campos de morte nazi, há por lá uma vitrina que amontoa centenas de sapatinhos mínimos de crianças. É a montra mais revoltante que um ser humano pode espreitar.

Um pouco mais à frente, exibe-se um rolo de serapilheira feito de cabelo humano. Abat-jours de candeeiro feitos com pele humana tatuada. Fotografias de barris cheios até cima com dentes de ouro arrancados às vítimas dos nazis.

“Os nazis fizeram suficientes coisas horríveis durante o Holocausto. Não precisamos de continuar a acreditar em falsidades ", referiu, sobre este assunto, o historiador Yehuda Bauer.

O que tem a escola a dizer sobre estas coisas? Como se ensina esta barbárie? Como se deixa entrar tamanho horror nas nossas salas de aula? Como se digere tanta infâmia? Faz algum sentido expor as nossas crianças a esta atrocidade? Faz sentido esconder-lhes esta realidade? A partir de quando se deve “entrar em detalhes”? Como se apresenta tanta monstruosidade? Como lidar com as provas documentais da Inquisição, do indizível extermínio ameríndio, do Holodomor soviético? Como se conta a biografia de um professor de História chamado Pol Pot? Como esse conta o genocídio arménio ou circassiano a um miúdo? Na maior parte dos casos não se conta.

Guerras de silêncio

Os manuais de História calam-se perante estas demasias. Não é porque a sua provada veracidade seja sequer controversa. Nem sequer é porque sejam realidades insuportáveis, uma discriminação positiva que pedagógica e eticamente podia até ser respeitável.

Aquilo que silencia estas atrocidades colossais nas nossas salas de aula é meramente o facto de não se terem tornado temas correntes na formação dos nossos estudantes de História. Não se estuda nada disto nas faculdades e portanto estes temas não adquirem “tracção curricular”.

Uma vez ausentes dos programas das cadeiras universitárias, permanecem longe dos currículos escolares. A esmagadora maioria dos programas universitários de História não passa, na prática, do século XIX. São poucos os professores de História que estudaram alguma coisa sobre a Primeira ou a Segunda Guerra Mundial nos bancos da Faculdade.

De resto, quem analise os currículos oficiais de História do 9º ano pasma em perceber que a Primeira e a Segunda Guerra Mundial são temas que deverão ser tratados sem qualquer detalhe. Somme, Verdun, Dunquerque, Estalinegrado, Normandia e Pearl Harbor são eventos descartáveis. Reproduzem-se nos manuais de História do Ensino Básico e Secundário os mesmos silêncios que existem no Superior.

“O problema judeu”

O estudo escolar destas catástrofes é intensamente desconfortável e representa um enorme desafio profissional para um educador. Fazê-lo constitui, porém, uma responsabilidade tão científica como ética. É preciso entender os contextos que geram as realidades.

Nos anos 40 do século XX, o Presidente norte-americano Roosevelt reconheceu que a Alemanha tinha “um problema judeu”; dizia ele que, embora fossem poucos, os judeus representavam cerca de 50% dos advogados, médicos e professores. Embora falsa, esta estatística era voz corrente. É por isso mesmo que é importante recordar estas declarações, não porque alguém as queira esconder (veja-se o intrépido livro de Rafael Medoff, “The Jews should keep quiet”, 2018), mas porque representam muito bem o quadro político anti-semita que então se vivia.

Custa recordar que Roosevelt defendia que não conviria trazer para os EUA demasiado “sangue judeu” e que, ao recebê-los da Europa, deviam ser dispersos um pouco por todo o lado para que não se alojassem muitos num só lugar e se tornassem indigestíveis pela população.

Venenos do passado

Quando ouvimos ex-presidentes norte-americanos afirmando hoje que os imigrantes “envenenam o sangue do nosso país” (They are poisoning the blood of our country), é impossível não recordar outras declarações que ficaram para a História pelos piores motivos: “Só há um único direito humano sagrado e esse direito é ao mesmo tempo o dever mais sagrado, nomeadamente o de fazer com que o sangue se mantenha puro, para que, ao proteger os melhores indivíduos, se proporcione um nobre desenvolvimento desses indivíduos”.

Quando se traz o Mein Kampf de Adolf Hitler para dentro de uma sala de aula e se lêem coisas como estas, percebe-se imediatamente que compreender o presente impõe que o passado não nos passe ao lado. Do mesmo modo, falar sobre atrocidades sem compreender os seus fundamentos com algum detalhe é uma perda de tempo.

Prudência e Rigor

Numa sala de aula, o estudo do Holocausto representa um empreendimento singular. Exige que se perceba duas coisas: em primeiro lugar, que a sensibilidade das crianças é um cuidado primordial e muitas delas são mesmo indefesas quando expostas à monstruosidade. Filtrar a informação e ministrá-la em dose certa é fundamental. Há imagens do Holocausto que podem fustigar e torturar uma memória de forma perpétua e desproporcionada.

Em segundo lugar, a única coisa que pode amenizar o impacto destas atrocidades nos nossos miúdos é o conhecimento factual e documentado dos acontecimentos.

A história do Holocausto deve ser contada às crianças dando passos seguros de cada vez, expondo realidade após realidade. Devemos prudência e rigor aos nossos miúdos. Nada mais. Com os nossos livros. Com as nossas aulas. Com os nossos filmes.

A sexyness do Holocausto

Pedagogicamente, o professor deve pressentir e subestimar a empatia. A empatia é um adversário didacticamente temível. Livros e filmes que se tornaram muito populares produziram uma espécie de euforia compassiva pelo Holocausto.

O problema é que, na corrida literária dessa empatia, muitas dessas obras deixaram-se conquistar por graves incúrias historiográficas. Fala-se da sexyness do Holocausto.

O estudo do Holocausto implica, na verdade, saber conter alguns dos nossos melhores instintos, contornando afinidades postiças e refreando solidariedades vãs.

Nenhuma empatia nos permite sequer aproximar do que significou passar por um campo de extermínio nazi. Uma vida inteira de estudo não nos trará a experiência de uma hora em Chelmno, Majdanek ou Sobibor. Nada há de recíproco entre um sobrevivente de Auschwitz e um estudante do Holocausto. Moram em universos distintos. Só um deles assiste a tudo a partir de um balcão, com binóculos de ópera.

O horror nazi não precisa de mentiras, mesmo que benignas e amáveis, para se consagrar às vítimas do Holocausto o lugar de reverência que ocupam na nossa memória. Para mentiras já bastam as que se repetem, as verdades que se silenciam e demais sabões.


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