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Soviética é a tua tia

Parece que o ensino em Portugal agora é soviético. Os professores portugueses andam a submeter os seus alunos a uma “determinada perspectiva” que, ainda por cima, não é “dominante na sociedade” e que aponta para uma “espécie de sovietização do ensino”.

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Rui Correia

Ou seja, em cada sala de aula das escolas portuguesas vive-se um processo revolucionário em curso que pretende moldar as novas gerações a uma estrutura social que segue em linha direita com a ideologia comunista.
Pretende-se instilar os valores socialistas da homogeneidade ideológica, e consequente abafamento de vozes dissidentes, consideradas incompatíveis com a doutrina... soviética. Não obstante este estado de calamidade pública, todos se conservam calados perante a insídia deste dilúvio ideológico que se abate sobre as nossas crianças.
Quase custa a crer como é possível que ninguém tenha dado por isto durante estes anos todos? A partir de hoje, onde se lê “Professor” deve passar a ler-se “Agente soviético”. Onde se lê “Conselho Pedagógico” deve ler-se “Conselho de operários, soldados e camponeses”. Onde se lê “Director escolar” deve passar a ler-se “Oficial de propaganda”.

A inevitável tia

As declarações a que, torturadamente, vamos assistindo acerca de putativos “ataques à família” perpetrados pelos professores “sovietizados” da escola portuguesa são de uma vileza tão alucinada, uma irresponsabilidade tão estouvada, um contorcionismo ético tão impostor e, sobretudo, um desconhecimento tão integral, tão cruamente desligado da realidade das escolas portuguesas que não pode ficar apenas acocorado a um canto da nossa estupefacção.
Sem lamúrias, whataboutismos ou moralismos levianos, quando pensamos na quantidade de crianças que vive sem condições de habitabilidade mínimas, sem dinheiro para ter a casa quente; nos miúdos que acordam e se deitam a pensar nas contas que os seus pais não sabem como pagar; nos avós e nas tias inevitáveis, que substituem os pais e agasalham tanta lágrima e dão abrigo a tanto desespero é mesmo de “sovietização” que precisamos conversar.
Num momento crítico em que o declínio de equidade social e o fosso do acesso à cultura, livresca e digital, se ampliam cada vez mais, não por causa da escola, mas apesar da escola e dos seus professores, só por calculado delírio alguém pode escolher a “sovietização” como o inimigo público número um da “família portuguesa”.

Austeridade ética

Quando pensamos na quantidade de professores e pais que todos os dias se empenham em garantir que os miúdos compreendem a importância de saber mais e melhor, de aprender, de persistir, de superar; a quantidade de professores que, neste preciso momento, estão ao telefone ou sentados à frente de uma miúda que chora porque o pai saiu de casa, ou porque a mãe sozinha se afunda em dívidas ou em comprimidos, ou porque um senhorio lhes arrancou as janelas para os obrigar a sair do apartamento, ou porque simplesmente acha que não presta para nada; se pensarmos na quantidade de professores que são muito mais do que pais e mães dos seus alunos e cuidam da higiene deles e delas, das refeições deles e delas, do vestuário deles e delas, da saúde deles e delas, das consultas de psicologia que eles e elas nunca poderiam pagar de outro modo; se pensarmos em somente algumas coisas como estas, talvez tivéssemos ocasião para nos dedicarmos a assuntos que realmente servem para alguma coisa.

Tudo menos sexo

Cumpre a cada professor insurgir-se contra esta demência. E se o problema é a neurose colectiva sobre sexo, falemos, pois, uma vez mais, a pedido destas famílias, de sexo.
Temos cada vez mais miúdos a assumir amores homossexuais nas escolas, sim.
Temos cada vez mais miúdos a explorar a sua identidade das formas mais surpreendentes e inesperadas, sim.
Temos cada vez mais miúdos a quererem mudar de identificação de género, sim. Querem, até, mudar de nome, sim. A Ana quer ser Ricardo e o João quer ser Emily, sim.
Temos cada vez mais miúdos e graúdos que não vêem nessa sua revelação absolutamente nada de extraordinário, sim.
Temos cada vez mais professores, mais pais, mais directores escolares, mais políticos esdruxulamente impreparados para lidar com estas realidades, sim.
Temos cada vez mais discussão e debate sobre a igualdade de géneros, em matéria de oportunidades profissionais, culturais e cívicas, sim.
Temos, por parte dos miúdos, cada vez maior paixão e empenho na afirmação livre da sua genuína personalidade societal, da sua orientação sexual, miúdos que, ao contrário de muitos adultos reprimidos e recalcados, já não têm qualquer receio de discriminação ou constrangimento por causa disso, sim.
E, por causa destes miúdos, temos cada vez mais oportunidades de debater as virtudes de uma sociedade que recusa iniquidades no acesso ao emprego, à habitação, aos cuidados de saúde, ou a quaisquer outros direitos, independentemente da orientação sexual ou da tipologia familiar de onde alguém provém, sim.

A vida real dentro da escola

Mas temos ainda muita brutalidade e voa ainda muita frase cruel, marcante, feroz dentro e fora das escolas. Temos muito trabalho por fazer. E, sim, muita dessa discussão sobre sexo, sexos e géneros, deve ser feita nas escolas como fora delas.
É imperativo moderar e pacificar a intensidade artificial e assustada que se confere ao tema. Transversalmente, em cada disciplina. A matemática, a geografia, como a educação física ou o português não são outra coisa senão faces da vida real. A escola não pode divorciar-se da vida. Aquilo que melhor se aprende nas escolas é o exemplo dos adultos e da vida.
Não existe sociedade sem preconceitos, nem discriminação, nem acaso. Nunca existiu, nem se crê que venha alguma vez a existir. É a vida a pavonear-se. Mas tal não sugere qualquer forma de resignação. Bem pelo contrário. A escola é a indústria da esperança e é assim que deve continuar a ser, todos os dias, em cada sala de aula. Melhorar, progredir sempre. Mais luz, mais acção e mais futuro.
Arredar de vez o sexo da equação para, em seu lugar, nos entrincheirarmos no combate à erradicação da mais elementar desumanidade, isso, sim, seria uma função elevada da escola pública. Ser soviético não foi nada disto. Foi, historicamente, o seu oposto.

O parlamento como sala de professores

Os professores portugueses não são soviéticos, muito embora os políticos os gostassem de proletarizar. Os professores repudiam abertamente qualquer tentativa de endoutrinamento ou ideologização do ensino, seja ela mussoliniana ou leninista. Já o provaram muitas vezes. Na rua, até.
A escola é o tear da democracia e a escultura da solidariedade, do brio e da lisura. A educação é o crematório da estupidez e da intolerância. Os professores portugueses não só encarnam diariamente a empatia e a decência que uma comunidade tem para oferecer, como defendem todos os seus alunos como se fossem seus filhos. Tratam de miúdos pessimamente comportados com segurança, equidade e isenção irrepreensíveis. Todos os milhares de Conselhos de Turma deste país começam por alertar sempre para a confidencialidade rigorosa de todas as deliberações e argumentos. A reverência superior pelo asseio ético é minuciosamente respeitada.
Tomara todos os parlamentos deste mundo saberem comportar-se como se comportam os professores numa sala de professores. Nas escolas portuguesas ninguém quer converter ninguém a não ser à devoção pelo conhecimento, pela solidariedade e pela cultura. Por causa de tudo aquilo que o conhecimento, a solidariedade e a cultura fazem a uma pessoa.
A escola e os seus professores não querem que as crianças cresçam a desprezar a política e os políticos. Mesmo que a política e os políticos tudo façam para que as crianças cresçam a desprezar a escola e os seus professores.
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