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Um em quatro internos está em burnout severo, centenas de médicos querem sair do país

A Ordem dos Médicos recebeu mais de 450 pedidos de certificados de qualificação profissional - exigidos para exercer medicina fora de Portugal. Ao mesmo tempo, mais de 400 vagas para internatos ficaram por preencher.

SIC Notícias

Lusa

Mais de 450 médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) querem sair do país. A Ordem dos Médicos recebeu mais de 450 pedidos de certificados de qualificação profissional. Além disso, mais de 400 vagas para especialidade ficaram por preencher.

Segundo o Diário de Notícias, a Ordem dos Médicos recebeu 453 pedidos de certificados de qualificação profissional, que são exigidos aos profissionais para exercerem fora de Portugal. Nos últimos cinco anos, quase 2.000 médicos submeteram esse pedido à Ordem dos Médicos.

Dos pedidos entregues na Ordem dos Médicos este ano, 75% foram feitos na zona sul do país, seguidos da região centro. A maioria dos médicos a realizar o pedido do documento têm entre 30 e 40 anos, havendo um considerável número de jovens médicos a ponderar deixar Portugal.

No concurso para o internato da especialidade, que começa em janeiro, 406 vagas ficaram por preencher. Isto significa os estudantes de medicina não optaram pela formação específica e poderão estar a fazer formação no privado ou no estrangeiro.

A Ordem dos Médicos vai contactar os médicos que optaram por não escolher nenhuma especialidade. O objetivo é perceber as razões que levaram a não se inscreverem no internato e evitar que mais vagas fiquem por preencher no SNS nos próximos concursos.

Depois de perceber as causas que levaram os médicos a tomar esta decisão, a Ordem dos Médicos vai estabelecer um plano para entregar ao Ministério da Saúde, avançou o bastonário Carlos Cortes, no dia em que foi divulgado um estudo sobre o burnout nos jovens médicos.

O objetivo é corrigir, com a ajuda da tutela, as deficiências nesta área, "para que não volte a acontecer aquilo que tem acontecido, cada vez em maior dimensão no SNS, que é os médicos nem sequer escolherem as vagas que estão disponíveis" e que são de "especialidades muito procuradas".

Carlos Cortes sublinhou que Ordem está preocupada com a situação da formação médica, nomeadamente com as vagas que ficaram por ocupar no procedimento concursal.

No seu entender, esta situação mostra que há um problema: "Os médicos não se sentem atraídos pelo SNS, que não lhes dá condições adequadas não só para tratar os seus doentes, mas também condições adequadas de formação".

Um em cada quatro jovens médicos tem sintomas graves de burnout

Um quarto dos jovens médicos apresenta sintomas graves de burnout e 55,3% está em risco de desenvolver a síndrome, revela um estudo da Ordem dos Médicos. O mesmo estudo, dirigido especificamente a internos, refere que 35,5% iniciou apoio psicológico ou psiquiátrico durante o internato.

Quase 65% dos internos inquiridos encontra-se num nível de exaustão emocional grave, 45,8% num nível elevado de despersonalização/desumanização e 48,1% apresenta elevada diminuição da realização profissional, adianta o estudo, realizado pelo Conselho Nacional do Médico Interno (CNMI) divulgado esta segunda-feira.

O objetivo do estudo, que decorreu entre agosto e setembro de 2023 e contou com 1.737 respostas (taxa de resposta de 16,9%), visou avaliar o burnout nos internos e a sua associação com variáveis socioprofissionais.

Comparando com o último estudo feito em 2016, os internos têm uma prevalência de burnout grave (24,7%) mais de três vezes superior aos restantes médicos (7%), e também têm níveis superiores equiparando com a média de estudos realizados noutros países (22,9%).

"Os médicos internos há mais tempo no internato, que consideram como mais desequilibrada a relação entre trabalho e vida pessoal, com menos autonomia no seu trabalho e que realizam mais horas extraordinárias apresentam níveis superiores de burnout", salienta o estudo.

A percentagem de internos totalmente envolvidos no seu trabalho é de apenas 5,3%, uma percentagem cerca de quatro vezes inferior à de outros países. Apenas 16,5% considera a relação entre a vida pessoal e profissional equilibrada.

maior percentagem de médicos com sintomas de burnout na região Norte (28,6%), seguindo-se Lisboa e Vale do Tejo (23,7%) e Centro (22,1%).

É na especialidade de Anestesiologia que se encontram os níveis mais elevados (32,4%), seguida de Cirurgia Geral (29,7%), Medicina Interna (28,9%), Medicina Intensiva (26,2%) e Ginecologia/Obstetrícia (22,2%).

Segundo o estudo, 84,8% dos inquiridos realiza horas extraordinárias, com uma média de trabalho semanal de 52,8 horas, o equivalente a cerca de 2,5 meses de trabalho extra por ano.

Mais de metade (55,1%) faz turnos mensais com duração superior a 12 horas, 62,1% realiza trabalho noturno e 55,9% tinha dois ou menos fins de semana livres por mês.

A elevada carga horária associada ao trabalho e estudo autónomos e prossecução de objetivos curriculares foi o principal tema elencado na pergunta do questionário sobre condições laborais.

Em declarações à agência Lusa, o presidente do CNMI, José Durão, considerou os resultados deste primeiro estudo nacional "bastantes preocupantes".

"Tínhamos a sensibilidade de que havia muitos internos com a sua saúde mental ameaçada, com muitos deles já a ter de recorrer ao psicólogo ou psiquiatra, ou mesmo a medicação, que acusavam muitas horas de trabalho, poucas horas de sono", afirmou.

Porém, "não esperávamos descobrir que praticamente 25% (...) estivessem em burnout severo".

Questionado se esta situação se deve ao trabalho nos serviços de urgência, José Durão referiu que será "uma das explicações", mas considerou que o problema "é multifatorial".

"Estamos a falar de várias situações, em várias especialidades, em várias regiões e, portanto, é difícil apontar uma só razão", mas, observou, "não é por acaso que os níveis mais elevados de burnout são detetados em especialidades hospitalares, nomeadamente médicas e cirúrgicas, com carga de horário de urgência também mais acentuado".

José Durão observou alguns fazem "dois, três turnos de 24 horas de urgência numa só semana, o que não só não é legal, nem está previsto nos seus programas de formação, como, obviamente, qualquer pessoa com bom senso percebe que não pode ser bom para a saúde mental das pessoas".

"Estamos a falar da geração que vai substituir nos próximos anos os médicos mais velhos que irão sair. Em que condições é que essas pessoas vão chegar ao início da sua carreira e com que vontade é que têm de continuar a trabalhar maioritariamente no Serviço Nacional de saúde, onde as condições também são piores e que mais facilitam este tipo de situação. Portanto, isto é muito, muito grave", lamentou.

O CNMI defendeu a criação de tempo protegido no horário de trabalho para estudo autónomo, a necessidade de revisão e uniformização das grelhas de avaliação do internato médico, promovendo a valorização de competências clínicas, e a agilização de apoio psicológico e/ou psiquiátrico aos internos em todas as instituições de formação.

"Neste momento, é obrigado a fazê-lo [estudo autónimo] nos tempos livres, nos fins de semana, nas férias, nas folgas, etc., o que agrava imenso este estado de burnout em que a pessoa já não faz as 40 horas laborais, faz 50 ou 60 ou 70 e em cima disso vai fazer horas extras para a sua formação", lamentou.

Ordem dos Médicos preocupada com os dados

Para compreender o problema, a Ordem está a desenvolver "uma série de iniciativas", entre as quais o estudo "Avaliação do burnout no internato médico português" que mostra que os internos têm uma prevalência de burnout grave (24,7%) mais de três vezes superior aos restantes médicos (7%).

"Muitas vezes os médicos internos são usados para tapar buracos em escalas", lamentou o bastonário, apelando ao Ministério da Saúde e à Direção Executiva do SNS para darem "melhores condições de formação para os médicos", garantindo, por exemplo, um tempo protegido tanto para os orientadores de formação como para os médicos internos.

Defendeu também a possibilidade de desenvolvimento de programas de investigação, "que são muito importantes e ajudam ao desenvolvimento do SNS", e dar condições para que os internos possam participar em cursos, apresentar trabalhos em congresso, o que tem sido "cada vez mais dificultado, até pelos vencimentos que os jovens médicos recebem", uma vez que "um congresso normalmente é muito caro".

"Devia haver uma maior atenção do SNS, do Ministério da Saúde, para esta questão da formação médica e, nomeadamente, para dar condições para os médicos internos se sentirem mais realizados, mais integrados e sentirem que efetivamente têm apoio numa área que é muito sensível não só para eles, mas também para o país e para a qualidade dos cuidados de saúde", destacou Carlos Cortes.

O presidente do CNMI, José Durão, disse que "assusta a aparente falta de vontade institucional, política para tentar agir e para inverter esta situação".

"Falta aqui muito apoio. Não só apoio às pessoas que já estão nesta situação de burnout ou perto dela, porque também temos 55% em risco de entrar em burnout severo, mas também agir para que as pessoas não cheguem a esse ponto", salientou.

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