A morte de um bebé de 14 meses entre os habitantes do autointitulado Reino de Pineal levanta questões sobre os direitos que a comunidade tem, à luz da Constituição Portuguesa. Em entrevista à SIC Notícias, Pedro Dias Marques, advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, afirma que a autodeterminação desta comunidade “é pura ficção” e que a liberdade de consciência não pode sobrepor os direitos fundamentais, especialmente no caso das crianças.
A autodeterminação é uma das questões defendidas pela autointitulado Reino do Pineal. O advogado sublinha que este direto, apesar de estar consagrado em convenções, “não é um processo automático” e tem de ser reconhecido por outros Estados soberanamente.
“Eu não posso hoje chegar ao meu apartamento e dizer que este apartamento passa a ser um Estado soberano do Pedro Dias Marques. Aquilo que acontece é que há um direito à autodeterminação dos povos, das próprias pessoas de regularem a sua vida pessoal e dos povos também se autorregularem, mas isto não é automático, depende do reconhecimento da comunidade internacional”, explica o advogado.
Pedro Dias Marques sublinha que é “uma pura ficção a ideia de achar que, tendo um território em Estado português, isso pode desencadear automaticamente aqui a Constituição de um Estado soberano”.
Sobre a liberdade de consciência, de religião e de culto, consagrado na Constituição Portuguesa, o advogado lembra o mesmo documento prevê “o acesso à educação e à saúde”, algo que, neste caso, está em colisão: “Se usam um artigo para justificar, também não se pode ignorar os outros artigos que são beliscados.”
“Esta liberdade de consciência começa pela consciência dos limites dessa própria consciência. Obviamente, que esta liberdade de consciência não autoriza nem isenta a responsabilidade pela prática de crimes”, afirma, acrescentando que existe também na comunidade um “certo populismo” em usar a Constituição para limitar direitos.
O advogado destaca ainda que, “se houver um conflito” entre a liberdade de consciência e os outros direitos fundamentais, este direito consagrado “não permite a estes indivíduos praticarem crimes em Portugal e limitar outro tipo de direitos” – e das crianças, em particular.
Pedro Dias Marques sublinha que o Estado português tem “uma especial atenção relativamente aos direitos mais fundamentais das crianças” e lembra que os pais, apesar do direito parental, “não podem de formam nenhuma limitar o crescimento da criança” e “imporem às crianças uma série de práticas, sejam educativas ou religiosas”.
Há crime no caso do bebé de 14 meses que morreu?
A PJ está a investigar a morte e cremação de um bebé de 14 meses na comunidade do Reino Pineal. Pedro Dias Marques sublinha que a investigação está ainda em curso e podem estar em causa muitos crimes. No entanto, há algumas contraordenações que já podem ser identificadas.
“Há aqui uma contraordenação: não foi registado o nascimento nem o óbito da criança. Antes de mais isso é uma contraordenação, isso temos a certeza”, afirma, destacando que o líder da seita confessou.
Além disso, o advogado explica que a decisão de cremar o corpo do bebé é “um crime de profanação de cadáver”.
“Às tantas, na entrevista, ele diz que em Portugal também se cremam pessoas. Obviamente que há cremação, mas a diferença entre a cremação e a profanação de cadáveres é autorização do próprio Estado de permitir. Portanto, isto que aconteceu é também um crime, tudo indicia.”
Sobre a bebé de sete meses que vive na comunidade, Pedro Dias Marques apela ao Estado que seja “energético” na atuação, uma vez que “estão em causa diretos das crianças”. Reconhece que o pedido dos avós para retirar a guarda da criança à mãe pode ser um “desafio”.
“Não é incomum vermos que muitas crianças vêm a morrer, porque, apesar de se ter a notícia eventual de uma suposta prática de um crime, o Estado demora a reagir”, afirma.
Pedro Dias Marques destaca ainda a importância da atuação dos cidadãos na denúncia destes casos que, apesar de serem crimes públicos, devem ser reportados ao Ministério Público para que possa investigar.