A contestação no Serviço Nacional de Saúde (SNS) instalou-se e o caminho parece ser de escalada. Considerando o problema e as soluções necessárias, é possível dizer que de facto o SNS vive uma crise. Elaborou-se um guia em 10 pontos que decifra muito do que está em causa e o que poderá acontecer nos próximos meses.
1. O que significa dizer que o SNS vive uma crise?
Não significa que o SNS corra o risco de desaparecer. Tampouco significa que não se continuem a encontrar casos de sucesso e excelência. Falar da crise no SNS é reconhecer dificuldades em manter o seu modelo de funcionamento. A conclusão que mais importa é que alguma coisa tem de mudar, caso contrário as dificuldades irão agudizar.
2. Qual o principal motivo da atual crise?
Os profissionais de saúde. Médicos, enfermeiros, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, outros técnicos superiores (psicólogos ou nutricionistas), assistentes técnicos e técnicos auxiliares já iniciaram ou irão iniciar um processo de contestação.
3. O problema é exclusivo de Portugal?
Não, depois da intensidade com que a Covid-19 afetou os sistemas e os profissionais, vários países estão a deparar-se com problemas semelhantes. O que parece estar a acontecer é que a pandemia veio acentuar muito problemas anteriores.
4. O que está a ser reivindicado?
O que os grupos profissionais reivindicam não é necessariamente o mesmo: aumentos salariais (no caso dos médicos), atualizações das carreiras (no caso dos enfermeiros e técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica), criação de carreiras (no caso dos técnicos auxiliares) ou aumento das contratações (no caso dos técnicos superiores).
5. Os motivos são justos?
Em traços gerais, sim e isso foi reconhecido pelo Ministro da Saúde. Ao longo dos anos não se procederam a mudanças, atualizações ou então promessas ficaram por cumprir. Há problemas com as carreiras criadas entre 2008 e 2009, mas também o período de intervenção da troika que alterou de forma profunda o funcionamento do setor público.
O descontentamento instalou-se mesmo que o número absoluto de profissionais no SNS tenha aumentado. Em rigor, contratar mais não significa que seja na quantidade suficiente, que os profissionais estejam onde são mais precisos e que desempenhem as funções necessárias. Por exemplo, há um envelhecimento estrutural de médicos no ativo que diminui muito a disponibilidade destes profissionais para trabalhar nas urgências.
6. É fácil encontrar um culpado?
Não se trata da culpa do Ministro A ou B. Isso é claro ao perceber-se que as dificuldades de Manuel Pizarro são as mesmas que Marta Temido sentiu.
Isto não significa desresponsabilizar quem governa. Mas é fundamental perceber o quão estrutural é o problema e o quanto isso limita a ação de quem exerce o poder em cada momento. Também por
isso, exige-se de quem governa a capacidade para tomar decisões, caso contrário o problema irá piorar.
7. Quais os sinais desta crise?
A forma mais direta de identificar esta crise no SNS é através da saída de profissionais (incapacidade de retenção), vagas que ficam por preencher (incapacidade de atração), indisponibilidade dos profissionais para trabalho suplementar (falta de reconhecimento e/ou recompensa condigna) ou aumento do absentismo (incapacidade para o desempenho profissional).
8. Quais as consequências desta crise?
Duas consequências são óbvias. Uma é a maior pressão que recai sobre os profissionais que estão em funções. Profissionais em esforço por demasiado tempo provoca o aumento de saídas, de indisponibilidade para o trabalho suplementar ou do absentismo. A segunda consequência é a degradação da qualidade e segurança dos cuidados. Mesmo que não se encontrem sinais críticos a curto prazo, importa avaliar até que ponto os utentes procuram alternativas no setor privado. Isso tende a transformar o SNS numa opção de recurso ou para aqueles que não têm forma de pagar. É como que uma bola de neve, dado que piora a retenção de profissionais de qualidade.
9. Que exemplos há desta crise?
A incapacidade de contratar os profissionais necessários para todo o território. A falta de profissionais para manter as atuais urgências em pleno funcionamento tem sido o exemplo mais mediático, mas não se podem esquecer a falta de médicos de família ou longas filas de espera na marcação de exames, cirurgias e consultas hospitalares.
A respeito das urgências, importa recordar que a solução do encerramento alternado teve como argumento o facto de ser provisório até à contratação de mais profissionais. É necessário saber como as grávidas e parturientes têm vivido este funcionamento e até que ponto a sua opção por clínicas e hospitais privados está ou não a aumentar.
10. Como resolver esta crise?
As reivindicações obrigam à revisão das carreiras e ao aumento da despesa com recursos humanos. O problema do ministro da saúde está em convencer o ministro das finanças, sobretudo perante a evidência dos últimos anos de aumento do absentismo e menor produtividade. Um ponto de partida será negociar com os sindicatos modalidades de contratos que valorizem o desempenho e punam a falta de compromisso. Até ao verão alguma coisa tem de acontecer.