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Como as barreiras ao aborto interessam à lei da eutanásia

A resposta do ministro Pizarro de que a situação seria avaliada é confrangedora. A lei da IVG põe a nu o quanto há leis que estão em vigor sem que sejam avaliadas e sem que se saiba como avaliá-las.

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Tiago Correia

Finalmente as barreiras no SNS ao pleno de direito de abortar entraram no foco mediático. Recorde-se que o aborto foi legalizado em Portugal em 2007 após um referendo que marcou o país. Uma investigação recente do DN mostra vários tipos de problemas em hospitais e centros de saúde de norte a sul. Esses problemas dizem respeito à recusa em atender mulheres que manifestam a intenção de abortar, a atrasos na marcação de exames e consultas e a circuitos labirínticos para os quais as mulheres são atiradas por motivos que podem apenas refletir descoordenação ou falta de conhecimento das normas, mas também uma punição tácita e moralista que viola o direito consagrado.

Não há outra resposta honesta senão dizer que o direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG) sofre de facto constrangimentos ilegais no SNS. Já antes da pandemia, a comunicação social e a Entidade Reguladora da Saúde o tinham sinalizado. Além disso, o tema surge com recorrência em aulas de mestrados e doutoramentos entre os alunos que ocupam lugares na saúde. A ideia com que fico é que não tivesse o assunto entrado no foco mediático, continuaria a ser negado e dissimulado politicamente.

Há uma forma simples de explicar o problema: falta de monitorização e avaliação da implementação da política. O que interessa saber da aplicação desta lei não é apenas quantos abortos são realizados e qual o tempo médio desde o primeiro contacto com o SNS. Interessa muito saber quantas mulheres não puderam abortar porque os obstáculos fizeram ultrapassar o tempo legal. Quantas mulheres sentiram culpa, acusação e punição quando seria suposto terem sentido apoio, dignidade e humanismo. Quantas mulheres tiveram de percorrer longas distâncias e aceder a vários estabelecimentos até conseguirem exercer o seu direito e quantas mulheres estão a optar por realizar abortos ilegais para evitar esta vivência.

A resposta do ministro Pizarro de que a situação seria avaliada é confrangedora. A lei da IVG põe a nu o quanto há leis que estão em vigor sem que sejam avaliadas e sem que se saiba como avaliá-las.

Tudo isto interessa à lei da eutanásia. O interesse do legislador sobre a qualidade desta lei não pode terminar após a votação no parlamento ou para passar no crivo do Tribunal Constitucional. Interessa ao legislador saber como garantir o cumprimento do espírito da lei no dia-a-dia e acautelar os aspetos essenciais à sua efetiva implementação.

Isto continua sem resposta na lei da eutanásia que o parlamento tenta aprovar. A atenção tem recaído sobre se entre o sofrimento físico, emocional e espiritual deve existir um “e” e um “ou”.

Tão importante quanto isso seria saber como se pensa a implementação do direito a morrer. Como permitir que a legítima objeção de consciência dos profissionais de saúde não limita o direito individual e o que fazer nesses casos. Como se define e avalia a plenitude desse direito e como evitar as barreiras num processo de decisão que não é imediato. Como preparar os profissionais de saúde para a possibilidade de lidarem com uma lei que colide com a sua consciência individual e os seus valores profissionais. Como preparar as famílias para este tipo de luto. Como enquadrar o direito a morrer em opções mais amplas, como o testamento vital, a ortotanásia, o suicídio assistido e os cuidados paliativos.

Tudo isto é essencial para uma boa implementação de uma lei da “boa morte”. Tudo isto é ensinado nos países que já aprovaram leis da eutanásia. Tudo o que se assiste com a lei da IGV irá acontecer com a lei da eutanásia se a devida atenção não for dada ao momento em que lei fizer parte do dia-a-dia. Tudo isto está ausente da atenção dos deputados que procuram aprovar esta lei. Tudo isto traz desconforto a alguém que, como eu, defende o direito individual a terminar com o sofrimento.

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