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Médicos vs. ministra

Opinião de Tiago Correia, comentador SIC e professor de Saúde Internacional.

Tiago Correia

A última semana voltou a ficar marcada por críticas ao Ministério da Saúde. Agora foram os médicos de família que se manifestaram contra a possibilidade de contratação de médicos sem especialidade para os centros de saúde. Conhecidos os argumentos da ministra e da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) percebe-se que há diferenças de fundo no modo de ver o assunto.

Para a ministra da Saúde, trata-se de uma medida que permite dar uma resposta imediata e sem impacto na qualidade dos cuidados perante o problema estrutural de incapacidade de assegurar a correta distribuição de médicos nos cuidados de saúde primários, em particular nas regiões do interior.

Para os médicos, a medida abre um precedente perigoso de desconsiderar a importância da especialidade de medicina geral e familiar, como se os cuidados prestados nos centros de saúde fossem passíveis de indiferenciação.

Também consideram que a medida não resolve a questão central relacionada com as condições laborais e de trabalho, entre as quais a falta de atratividade da carreira médica no serviço nacional de saúde (SNS), a falta de profissionais nos centros de saúde incluindo para funções administrativas e de secretariado, a existência de modelos organizativos demasiado burocráticos ou que não vão ao encontro das expectativas dos profissionais e a dificuldade da prática clínica devido a obstáculos na referenciação dos doentes para as especialidades hospitalares.

Os argumentos de ambas as partes são válidos, o que mostra uma vez mais que assuntos complexos só podem ter respostas complexas.

Desde logo, é verdade que são necessárias medidas com efeitos imediatos enquanto se procuram outras com efeitos de médio e longo prazo. Não há alternativa para abordar os problemas das urgências de obstetrícia ou da falta de médicos de família. Mas o que mais salta à vista é a profunda desconfiança do setor em relação à tutela na construção de um caminho por etapas.

Num clima de confiança há cedências de parte-a-parte que está a ser difícil de alcançar. Dois argumentos são evocados para justificar esta dificuldade. Acho que nem um nem outro dizem grande coisa e servem mais como bode expiatório para esconder as verdadeiras causas do problema.

O primeiro é que o Ministério tem que lidar com o todo, que representa mais do que a soma das partes. Claro que cada uma das partes não tem – e direi que não tem que ter – uma visão de conjunto, mas isso não justifica o conflito. Trata-se das regras do jogo que os intervenientes conhecem à partida e sabem que são convocados a jogar no momento em que aceitam os lugares. Não é novidade que a arte em política é conseguir condicionar de forma voluntária as preferências e ações dos outros. Haja capacidade para tal.

O segundo argumento é a luta partidária. Sem ingenuidade sabe-se o quanto os lugares de administração e decisão técnica, sindical e corporativa são permeáveis às agendas dos partidos políticos. Não há nenhuma novidade nisto e também por isso a história tem ensinado a importância de manter janelas de negociação e diálogo em permanência e não apenas quando a agenda mediática não sai de cima. Além disso, o argumento da instrumentalização partidária perde relevância no momento em que os profissionais consideram que não há outro meio senão ir para a rua. Ignorar as verdadeiras causas disso é enterrar a cabeça na areia.

De forma simples, o problema que está em causa é se quem governa a saúde sabe e quer negociar soluções duradoras. É esta a crítica que mais se tem ouvido e que atravessa médicos, enfermeiros, administradores hospitalares, técnicos superiores de saúde, técnicos de diagnóstico e terapêutica, assistentes técnicos e técnicos operacionais

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