Foi publicado há poucos dias um diploma que dá mais um passo na descentralização no domínio da saúde. Trata-se de um despacho que estabelece os termos da transferência de um grupo profissional das Administrações Regionais de Saúde para os mapas de pessoal das câmaras municipais. Estão em causa os assistentes operacionais que exercem funções nos cuidados de saúde primários e nas divisões de intervenção nos comportamentos aditivos e nas dependências.
O processo de descentralização merece atenção. Representa uma bandeira antiga que cada vez mais tem entrado nas áreas da saúde e educação. Os seus princípios reúnem consenso alargado, que contrasta com um caminho difícil. Dois anos de pandemia atrasaram mais este processo, contudo, há que lhe reconhecer dificuldades intrínsecas. Chegados aqui arrisco-me a dizer que continua a ser muito pouco claro o quão sinuoso o caminho da descentralização no domínio da saúde continuará a ser e qual a melhoria que dele podemos esperar.
É verdade que o XXI Governo Constitucional (de 2015 a 2019) deu um novo ímpeto ao assunto. Contudo, não há nada de novo na defesa da subsidiariedade desde a reforma de Gonçalves Ferreira (1971), a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) (1979), a concessão de autonomia administrativa e financeira ao SNS (1982), a criação dos “centros de saúde de segunda geração” (1983) a que se seguiu a criação da Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários (1984), a criação dos primeiros centros de responsabilidade na lei de gestão hospitalar (1988), a aprovação da primeira formulação da Lei de Bases da Saúde (1990) a que se seguiu o estatuto do SNS (1993), o regime remuneratório experimental dos médicos da carreira de clínica geral (1998), a estruturação local e regional dos serviços de saúde pública, a criação dos centros de responsabilidade integrada, das agências de contratualização dos serviços de saúde, do regime dos sistemas locais de saúde e dos “centros de saúde de terceira geração” (tudo isto em 1999), a criação do novo regime de gestão hospitalar (2002) e da rede de cuidados de saúde primários (2003), a que se seguiu a “grande” reforma dos cuidados de saúde primários, com o surgimento das unidades de saúde familiar (2007), dos agrupamentos de centros de saúde (2008) e uma nova articulação com a saúde pública (2009), ou a lei de descentralização de 2015.
Somente por este longo rol de reformas é percetível que alguma coisa continua por cumprir, quando em 2019 o mote da descentralização voltou a surgir com pompa e circunstância. E o que continua por cumprir é que qualquer esforço de descentralização irá colidir com o centralismo na gestão financeira das unidades de saúde e na nomeação das respetivas lideranças.
Tem que haver disposição para passar para os cidadãos parte do controlo da imensa máquina administrativa das organizações de saúde e dos programas de saúde e bem-estar. Claro está, com mecanismos eficazes de monitorização, avaliação e responsabilização.
É a passagem dos assistentes operacionais para as câmaras municipais que ditará o sucesso ou insucesso do caminho da descentralização? Era este o passo que faltava em décadas de debate? O que se encontra é uma orgânica do ministério da saúde difícil de perceber, em que as administrações regionais de saúde estão claramente na berlinda. Aprofunda-se uma complexa rede de funcionamento que liga os prestadores de cuidados, às câmaras municipais, aos órgãos intermunicipais, regionais e nacionais. É uma máquina administrativa muito irregular no território e que pende para uma gradual complexidade. O que fica onde e porquê é cada vez mais difícil de aferir.
A resposta imediata seria: são os cidadãos. Pois bem, não há a menor demonstração de que as opções tomadas sejam aquelas que os cidadãos mais beneficiariam. Tampouco é dito o como e o porquê desse benefício. Há políticas cujo objetivo é a melhoria da tomada de decisão, do funcionamento das organizações ou do desempenho dos profissionais, cujos impactos sobre os cidadãos são muito indiretos. A questão aqui é que não sabemos o porquê deste caminho: quais os problemas que visa corrigir, como é que estas soluções o garantem, que alternativas havia e como medir os ganhos.
Na política de descentralização fez-se algo, mas não o fundamental. O algo foi agilizar a manutenção, a conservação e o equipamento das instalações de prestação de cuidados de saúde primários. Arranjar o ar condicionado, o elevador avariado, o vidro partido ou a porta que não abre tornou-se mais célere.
O fundamental é perceber como decorrerão os novos programas de prevenção da doença, promoção de estilos de vida saudáveis e de envelhecimento ativo. Serão mais bem desenhados e avaliados do que no passado? Em que medida será possível ter órgãos de decisão onde estejam representados os direitos e as necessidades de populações plurais e conscientes? Até onde se conseguirá ir em matéria de fiscalização e responsabilização da transferência de verbas para uma gestão dos recursos humanos mais apostada na premiação do desempenho? Sob que mecanismos a atual reforma conseguirá evitar atropelos e a criação de zonas de ninguém perante a multiplicação de atores a diferentes níveis?
Em suma, os problemas que a reforma da descentralização visa corrigir, o motivo destas soluções e os resultados esperados permanecem num vazio que impede perceber o caminho futuro.