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Há quem defenda os Maduros deste mundo como heróis, mesmo sabendo o que fazem aos seus

Opinião de Duarte Gomes. Esta semana perdi uma pessoa de família em circunstâncias difíceis de digerir. Uma pessoa relativamente jovem, ativa e com o melhor feitio do mundo, que acabou traída por uma queda inofensiva, com custos irreversíveis pouco depois.
Ariana Cubillos

Duarte Gomes

Não sou apologista da promoção pelo drama ou da notoriedade via desgraça. Queria que esta ideia ficasse muito clara.

Sei que, a cada segundo que passa, há pessoas boas que partem de forma inesperada e cruel. O desabafo, mais emocional que racional, reconheço, pretende levantar outro tipo de reflexão.

Este meu familiar, tal como tantos outros, emigrou jovem, rumo ao que achava ser uma vida melhor. Convém contextualizar: anos 50, 60, zona rural, baixa escolaridade e muitas dificuldades para quem descendia de gente humilde e menos afortunada.

O destino foi Caracas, capital de um país então conhecido como a "Venezuela Saudita", tal a sua riqueza em petróleo e as oportunidades que, dizia-se, permitiam uma vida tranquila e segura para todos. A cidade tinha prédios altos e modernos e infraestruturas de topo. Foi esse o cenário que ele encontrou. E foi aí que criou família, viveu e trabalhou até partir.

As coisas mudaram totalmente quando Chávez chegou ao poder em 1999. O regime condicionou liberdades e retirou direitos. Toda a gente, menos quem é indecente, sabe disso.

Aos poucos, um dos países mais ricos da América do Sul, passou a ser aquilo que é hoje: o Inferno na Terra, com uma crise real sem fim à vista.

A hiperinflação, a pobreza de 90% da população e a escassez de alimentos são apenas o rosto visível do caos. Há outros, como o aumento galopante da criminalidade (há homicídios e sequestros constantes), a perseguição política, o ataque cerrado à liberdade de expressão, a corrupção descontrolada, etc, etc. Só para que percebam, o salário mínimo na Venezuela é hoje inferior 4 dólares/mês. Dá para comprar meio frango.

Infelizmente para ele, o declínio no sistema nacional de saúde foi outro dos danos colaterais desta forma de governar. Imaginem este cenário: a maioria dos hospitais com más condições de higiene e escassez brutal de médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares e afins (atenção, não há comparação com o que se passa por cá).

Faltam todo o tipo de recursos humanos, mas também operacionais, logísticos e tecnológicos. As unidades hospitalares quase não têm meios de diagnóstico (aparelhos para realizar ecografias, RX, TAC, RM), não há medicamentos, não há camas suficientes para todos e às vezes nem há água ou electricidade. Raramente há rede móvel ou acesso à internet. Quem consegue "cama" para o seu familiar, tem que trazer colchões, lençóis e cobertores de casa. Ou isso ou senta-o numa cadeira de plástico, daquelas que se vê no "Café do Ti Barnabé". E quem quiser monitorização mais próxima do seu ente querido, que pague 60 ou 70 dólares por dia a um "enfermeiro amigo". Medicação prescrita, soro, seringas? Só se compradas na farmácia, porque nos hospitais não há.

Não sei se o destino seria diferente caso a assistência médica fosse a esperada. Talvez sim, talvez não.

Mas é impossível não questionar "E se?" quando se sabe a forma degradante como tudo aconteceu.

Horas e horas de espera, ausência de tratamentos, de avaliação médica, de explicações. Negligência total, até no recobro a uma cirurgia ao cérebro. Terceiro mundo, sem tirar nem pôr.

O meu tio faleceu sem o respeito que esse país lhe devia. Não sei se a revolta maior é por não digerir bem este desfecho ou se por saber que, por cá, neste nosso país tão diferente, há quem defenda os Maduros deste mundo como heróis, mesmo sabendo o que fazem aos seus.

É difícil de entender. É impossível de aceitar.

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