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Chefe da missão diplomática da Palestina: Marcelo "nem reconheceu o que aconteceu às pessoas em Gaza"

O chefe da missão diplomática da Palestina culpa a ocupação israelita da Cisjordânia pelo facto de continuar sem haver eleições livres. Nabil Abuznaid recusa classificar como terroristas os ataques do Hamas contra civis israelitas, ocorridos no dia 7 de outubro. Mas, na entrevista à SIC Notícias, que aqui pode ver e ler na íntegra, o diplomata diz que Marcelo Rebelo de Sousa optou por falar para as câmaras de televisão quando dizia que a guerra no Médio Oriente tinha sido começada pelos palestinianos.

Rodrigo Pratas

- Sr. Embaixador, a primeira pergunta que tenho para si visa a conversa que teve com o Presidente português, quando Marcelo Rebelo de Sousa disse que, desta vez, tinha sido alguém do seu lado, do lado palestiniano, a começar esta guerra. O senhor disse que foi uma reação brutal. Dez mil pessoas morreram, mais de 11 mil, segundo os números do Hamas. Falou com o Presidente português, desde então?

Bem, antes de mais, obrigado por me ter convidado para estar aqui hoje. Pensei que esse assunto estava arrumado. Esse dia, 3 de novembro, mas, infelizmente, ainda circula e, quando vou a algum lugar, as pessoas dizem-me: "Sim, esteve com o Presidente."

Foi uma situação infeliz quando o Presidente disse que tínhamos sido nós a começar a guerra. E, de certa forma, ele não reconheceu os milhares de pessoas que foram mortas em Gaza. Portanto… E ele estava a falar para as câmaras. Não foi uma afirmação em privado, entre mim e o Presidente.

Portanto, eu disse: “Sr. Presidente, a reação foi brutal. Morreram dez mil pessoas.” E ele ignorou o que eu disse, e nem reconheceu o que aconteceu à Palestina e às pessoas em Gaza. E continuou.

E eu também disse que vivíamos sob ocupação e ele disse que não importava.

- Acha que foi digno de um Presidente?

Como?

- Se foi digno de um Presidente?

Bem, conhecendo-o, esperava algo diferente. Pelo menos, que mostrasse compaixão ou que fizesse uma declaração a reconhecer também o sofrimento palestiniano.

E, quanto à sua pergunta sobre se recebi algum telefonema ou algo assim, não, não recebi. E também não vi qualquer declaração para esclarecer o que acontecera, de uma forma clara e frontal, para dizer que, infelizmente, também foram mortos civis palestinianos.

- Mas, na verdade, e factualmente, o Presidente português disse alguma coisa errada ou imprecisa? Ou foi apenas a forma como o disse e onde o disse que vos deixou insatisfeitos?

Bem, eu senti que ele estava realmente a culpar os palestinianos, no geral, em tudo aquilo que ele disse. Ele não os culpou e mostrou compaixão, depois da reação israelita. Ele culpou os palestinianos, completamente, e disse que os palestinianos tinham começado a guerra.

E sabe quem pegou nas citações do Presidente? Um lobby israelita, nos Estados Unidos e em Inglaterra, e disseram: "Quem disse finalmente a verdade? Foi o Presidente português que disse ao embaixador da Palestina que tinham sido os palestinianos a começar a guerra e não iriam conseguir um cessar-fogo."

Mesmo assim, Portugal, nas Nações Unidas, apoiou o cessar-fogo.

- Sim, apoiou o cessar-fogo humanitário e votou a favor dessa resolução. Gostaria de saber a sua posição e a sua opinião, e a dos palestinianos, porque o senhor é o embaixador da Palestina na missão diplomática em Portugal…Queria saber a sua posição em relação às declarações que o Presidente Erdogan da Turquia fez esta semana, caracterizando Israel como um Estado terrorista. Concorda com Ancara e qual será a posição palestiniana quanto a essa relação?

Os presidentes e os países podem fazer as declarações que quiserem, mas vou dizer-lhe uma citação de um livro. Um livro de Maquiavel chamado "O Príncipe".

Ele diz: "As coisas piores e mais perigosas são privar as pessoas de levarem uma vida normal e alerto os príncipes e os regentes de que nunca estarão em segurança, se negarem às pessoas a sua liberdade e os seus bens."

Isto explica toda a situação na Palestina. A nós, palestinianos que vivem sob ocupação, ou palestinianos que foram obrigados a deixar a Palestina e que vivem em campos de refugiados, foi-nos negado que vivêssemos de forma normal nas nossas terras.

- Mas isso é diferente de caracterizar um país como um Estado terrorista. Israel é ou não um Estado terrorista?

Bem, penso que o Estado de Israel está a exercer atos de terrorismo sobre os palestinianos, portanto, se quer que eu lhe diga aquilo que estão a fazer em Gaza e na Cisjordânia… Porque a ocupação, que eles fazem, é a forma mais agravada de terrorismo.

O que significa a ocupação? Aterrorizar as pessoas todos os dias, confiscar as terras delas, prendê-las, limitar os movimentos delas…Não podem ir às mesquitas rezar. I

- E o Hamas é uma organização terrorista?

Bem, posso dizer-lhe...

- Basta um "sim" ou "não".

Não, não é uma pergunta de "sim" ou "não". Há uma terceira resposta. Nós, os palestinianos, lutamos pela nossa liberdade. Nós, como eu, escolhemos o caminho das negociações, das discussões pacíficas, das relações pacíficas com Israel, para alcançarmos os nossos direitos.

Nós, os palestinianos, a OLP, assinámos os acordos de paz com Israel, reconhecemos o Estado de Israel e Israel reconheceu a Palestina ou a OLP, em 1993, em Oslo.

- Sr. Embaixador, não está a responder à minha pergunta. Deixe-me voltar ao porta-voz do Hamas, Ghazi Hamad, que disse numa entrevista à televisão libanesa, que “nós, os palestinianos e o Hamas, somos vítimas de ocupação. Ninguém nos deve censurar pelas coisas que fazemos. A 7 de outubro, a 10 de outubro, tudo o que fazemos é justificado. A ocupação da Palestina tem de acabar.” Perguntaram-lhe se isso incluía a destruição de Israel e ele disse: “Claro. Sim, claro.” A Autoridade Palestiniana partilha este objetivo?

Não. Não comento o que outras pessoas…

-Não lhe peço que comente. Só lhe pergunto se a Autoridade Palestiniana partilha este objetivo do Hamas.

Eu não apoio a morte de ninguém, quaisquer civis, quer no dia 7 de outubro quer hoje. Os civis não devem pagar pelos políticos, pela ocupação e por outras coisas. Se eu não condenar a morte de israelitas, não tenho moral para condenar o que os israelitas estão a fazer. Condeno as mortes dos dois lados, quer sejam israelitas ou palestinianos.

Mas a pergunta que a maioria das pessoas tenta evitar é: o que causou isto? Qual é a raiz do problema? Parecemos assassinos? Ocupámos algum país? Oprimimos algum povo? Não parecemos normais? Estamos a lutar para ser livres, como vocês. O que mais gostava na vida era ser livre, como vocês, ser um ser humano, e que os meus filhos também o fossem.

- No dia 7 de outubro, foi um ataque terrorista ou não?

Numa situação em que civis são mortos, somos contra isso. Portanto…

- Não respondeu à pergunta. Foi um ataque terrorista?

Depende de quem o diz.

- Estou a perguntar-lhe a si.

- As pessoas…Deixe-me dizer-lhe. No início, sim, foi. Na Revolução Americana, os britânicos eram os terroristas? Depende do ponto de vista. Algumas pessoas dizem que é correto lutar pela liberdade. Vocês, portugueses, lutaram e conseguiram. Foi uma demonstração pacífica para se oporem e acabarem com a ditadura.

- Não houve ataques terroristas.

- Sim, tiveram sorte.

- Falemos de política na Palestina. Não houve eleições para a presidência da Palestina durante quase 20 anos. As autoridades palestinianas não realizaram nem eleições parlamentares nem presidenciais, e isso atrasou a saída do Presidente Abbas em 2021. Porque é que durante tanto tempo não houve eleições?

É uma boa pergunta. Nós, palestinianos, estamos a lutar para ser livres, mas também para que haja democracia, para que haja um Estado da Palestina, um Estado democrático.

Vivi a vida toda na Europa, posso dizer que sei o que é a liberdade. Mas a democracia liga-se à liberdade. São como duas faces de uma moeda, a liberdade e a democracia. Quando as pessoas não têm liberdade, é muito difícil alcançar uma democracia. Na Palestina, como não temos liberdade, não é possível que todos os palestinianos votem.

Tentámos realizar eleições. Os israelitas disseram: “Os palestinianos em Jerusalém não poderão votar.” Tentámos a Europa, que nos tinha feito promessas, mas os países europeus não foram capazes de pressionar os israelitas no sentido de permitirem que os palestinianos em Jerusalém pudessem votar.

Poderiam fazer eleições em Portugal e permitir que houvesse pessoas que não pudessem votar? Deixá-las-iam para trás? Ou diriam que só podiam aceitar se todos os portugueses votassem? Foi isto que dissemos. Os palestinianos…

- Não é uma forma de o Sr. Abbas se manter no poder?

Sim, e certamente ele dirá que se amanhã os israelitas nos permitissem ter eleições nas zonas palestinianas, e não onde os israelitas decidirem…

- Incluindo Gaza?

Gaza… Jerusalém Oriental era o problema. Trump disse que Jerusalém Oriental que não é uma zona palestiniana.

- Mas houve eleições em Gaza também, e que sabemos que o resultado…

Assim como na Cisjordânia. O Hamas ganhou. Mas digo-lhe…

- E mataram muitos apoiantes da Fatah em Gaza, certo?

Foi uma questão interna, e fizeram-no, o que não foi correto.

- Morreram mais de 150 pessoas do lado da Fatah.

Sim, mas a pergunta é, nesta questão da democracia, têm de nos dar liberdade no nosso país, pois não podem esperar que pessoas que não se podem deslocar, que não podem ir à igreja…

- Entendido, Sr. Embaixador. Avancemos para outra pergunta que diz respeito aos direitos do povo palestiniano. O Sr. Abbas decidiu emitir um decreto a dissolver o Sindicato dos Médicos da Palestina, no ano passado, onde predominavam representantes afiliados a fações da oposição, e a nomear um conselho constituinte não eleito. Posteriormente, revogou essa decisão. Em junho do ano passado, as forças de segurança em Hebron fizeram dispersar um protesto pacífico contra o crescente custo de vida e detiveram os organizadores. Isto são dados da Amnistia Internacional. A minha pergunta é: é esta a autoridade da Autoridade Palestiniana?

Sou contra qualquer tipo de opressão, algo feito contra quem tenta expressar a sua opinião. Não apoio isso, não foi correto. Se as pessoas foram punidas… Devem ser julgadas, se estiverem a fazer algo incorreto, porque…

- Sr. Embaixador, falamos de decisões da Autoridade Palestiniana. Pergunto: é esta a autoridade da Autoridade Palestiniana?

Não digo que seja correto, está errado. Se as pessoas estão a protestar pelos seus direitos - e sabemos o que significa - e são mortas, é errado. Não direi que é correto. Acredito na liberdade das pessoas.

Se aconteceu, quem o fez deve ser punido.

- E também devem ser punidas pessoas como Muhammed Kamel al-Jabari que, no ano passado, perpetrou um tiroteio fatal à entrada de um colonato israelita na Cisjordânia ocupada, que matou um homem israelita e feriu vários civis antes de um guarda o matar?

Estamos a tentar falar de um conflito e está a falar-me de incidentes aqui e ali? E o facto de Israel bombardear civis? E a Fatah? E os campos de paz? E diz-me que com a Autoridade Palestiniana, cinco ou seis pessoas foram mortas. Como explica isso?

Fala nos colonos israelitas, e disse que um colono foi morto. Digo-lhe que Baruch Goldstein foi a uma mesquita em Hebron e matou 30 pessoas que rezavam e feriu outras 100.

Não se pode escolher. Vemos violência e opressão diária da parte dos israelitas e diz que os palestinianos fizeram isto e aquilo.

Quantos palestinianos… Podia falar-lhe de dez mil palestinianos mortos por israelitas em situações assim. E digo-lhe que se os palestinianos o fizeram, está errado.

- Sr. Embaixador, quanto aos Direitos Humanos na Palestina, há outra questão que gostava de referir. O facto de haver muitas pessoas da comunidade LGBTQ+ que são perseguidas e mortas por familiares na Cisjordânia, por exemplo, e que muitas têm de fugir para Israel para não serem mortas. A Autoridade Palestiniana deve continuar a fazer vista grossa relativamente a esta questão e permitir que familiares matem homens e mulheres gay?

Não sabia que tinha morrido alguém nestas circunstâncias. Na Cisjordânia.

- É muito comum.

Não é verdade. Questiono a sua afirmação. Se me disser nomes, porque nós...

- Há vários relatos e documentários sobre o assunto.

Ouvimos histórias que podem ter acontecido em qualquer lado, mas não me diga que os palestinianos são diferentes dos outros. Em Portugal, há pessoas que não gostam de gays, que não aprovam a homossexualidade. Há em todo o lado.

- Não matam ninguém.

Pode ser um caso isolado. Está a falar de um caso isolado. Isto não é uma política do Governo.

- Qual é a política do Governo quanto a esta questão?

Não se envolve nos comportamentos e ideais das pessoas, se forem apropriados, se não for nas ruas e não estiverem a expô-lo às pessoas, porque temos as nossas regras de conduta e comportamento. Diz que as pessoas…

- É um "não pergunte, não conte"?

Não interferimos na vida das pessoas. É como a expressão que vem dos EUA, "não pergunte, não conte". Não perguntamos, mas uma situação destas podia acontecer em qualquer lado.

Às vezes, em discussões familiares, alguém morre, mas não há nenhuma lei...

- E acha isso normal?

O quê?

- Um familiar matar outro porque…

Não, não digo que é, porque… Não me pode dizer que, em Portugal, ninguém morre por… Pode morrer alguém numa discussão por um lugar de estacionamento. Não porque haja uma política…

Não me diga… Eu sei que todas as organizações internacionais do seu conhecimento quando vão à Palestina encontram-se com estas pessoas, mas secretamente, porque não é aceite até hoje como algo que se faça publicamente.

Mas ninguém persegue ou age contra essas pessoas. Todos os grupos internacionais de Direitos Humanos encontram-se com elas, fazem visitas e está tudo bem.

- Sr. Embaixador, há um grande problema que, provavelmente, está a impedir israelitas e palestinianos de chegarem a um acordo num futuro próximo, que é o ódio. Concorda?

Não, não. É a vontade de roubar terras palestinianas, é isso. Se for agricultor aqui, e lhe roubarem a terra diariamente…De onde vieram estes colonatos? De terras confiscadas. Onde vivem 800 mil colonos israelitas na Cisjordânia?

Nem vou falar sequer de antes de 1948. Sabe que há ruas só para israelitas? Não nos permitem estar nas nossas terras, nas nossas ruas. Os israelitas podem porque têm matrículas especiais. Consegue imaginar não se poder deslocar?

Como vocês fazem aqui, quando vão apanhar azeitona. Sabe que precisa de licença militar para fazer isso na Palestina? Para ir à sua própria quinta? É disto que temos de falar, da opressão feita ao povo palestiniano, e penso que estamos a agir corretamente em relação aos Direitos Humanos face a todas as dificuldades, porque se não temos liberdade, não pode haver democracia se não somos livres. A democracia está ligada à liberdade.

- Isso significa que, no futuro, para voltar a haver negociações com Israel, um ponto crucial para tal seria que Israel dissesse e assumisse que os colonos serão expulsos da Cisjordânia? É uma questão crucial para haver negociações?

Porque não faz a sua pergunta devidamente? Isto é território ocupado, segundo o Direito Internacional. O seu governo diz que é território ocupado, todos os países dizem que os colonatos são ilegais. E quer que um palestiniano diga que odeia judeus, que disse isso sobre eles.

Está a dizer, é um facto, que os colonatos são ilegais. Se eu me apoderar de um território de alguém e o seu tribunal disser que é ilegal, por lei, eu deveria ser expulso. Porque têm os palestinianos de dizer isso?

Os israelitas violaram o Direito Internacional, são os israelitas que não…

- Diz então que Israel deve cumprir o Direito Internacional e fazer o que for preciso para cumpri-lo, e que isso seria um início para...

Não podem ocupar territórios. Temos milhares… Porque há um Direito Internacional? Porque está a falar sobre leis se um país como Israel não respeita a lei? Porque me faz perguntas sobre os gays e tudo o mais, se Israel não respeita uma só regra das Nações Unidas?

Quão justo é para comigo nas suas perguntas? É isto que interessa. Fale sobre a ocupação, do dia a dia dos palestinianos, das nossas crianças.

- Gostaria de falar sobre qual seria uma forma aceitável de sair desta situação num futuro próximo, ou no futuro, para que ambos os lados possam voltar às negociações? Quais seriam as condições principais para o aceitar?

Sabe o que o Governo de Israel disse hoje? Para queimar os palestinianos, para os expulsar, que não pertencem ali, e o que se passa também em Gaza? Consegue imaginar as pessoas sem cuidados médicos, sem medicamentos, que não conseguimos enterrar? Enterram-nos em valas. E nós estamos a ver.

Põem dois bebés na mesma incubadora porque não têm condições. O que é isto? É isto que Israel está a fazer. E afirmam ser a única democracia no Médio Oriente? Quem acredita nisso?

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