A Assembleia Geral das Nações Unidas é cada vez mais encorajada a investigar os crimes contra a humanidade levados a cabo no Iémen desde o início da guerra em 2015, com 20 milhões de habitantes necessitam de ajuda humanitária e mais de 5 milhões encontram-se em risco de morrer à fome.
O Iémen vive um conflito armado desde 2014: de um lado, estão os rebeldes xiitas houtihs, com o apoio do Irão; do outro, as forças sunitas leais ao Governo, apoiadas por uma aliança internacional liderada pela Arábia Saudita.
O conflito deixou o país numa situação de crise extrema, com serviços públicos destruídos e um Serviço Nacional de Saúde em colapso, ao lado da fome e da miséria vividas diariamente pela população, onde milhões de crianças não sabem o que é ir à escola.
Agora, mais de 60 organizações humanitárias, como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch, pedem à Assembleia Geral das Nações Unidas, esta quinta-feira, a criação de um órgão de investigação para recolher e documentar provas sobre as graves violações de direitos humanos no conflito do Iémen.
As organizações internacionais referem que o assunto é urgente e que "a comunidade internacional não pode ficar parada nos esforços de responsabilização por abusos e crimes de guerra” no país.
Os signatários criticam as "pressões" e as "campanhas agressivas de lóbi" por parte, sobretudo, da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, que lideram a coligação militar que combate os rebeldes houthis para bloquear qualquer prestação de contas ou responsabilização no conflito no Iémen.
No entender das organizações, são estas pressões que explicam o fracasso da missão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que suspendeu em outubro o trabalho do "grupo de especialistas" que investigava a guerra no país árabe há quatro anos.
As organizações deixam claro que não atribuem os crimes a apenas uma das partes beligerantes, mas a ambas.
A secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard, aponta que as partes no conflito "cometeram atrocidades com impunidade e aparentemente não há fim à vista para esta guerra", pelo que apela: "temos que agir agora".
"Todos dias, mais pessoas são feridas e mortas e a Assembleia Geral [da ONU] pode salvar milhões de vidas", diz Callamard.
As organizações humanitárias dizem que o sofrimento infligido aos iemenitas exige que um órgão de investigação "resolva a impunidade no conflito em curso e envie um aviso claro aos culpados de todos os lados de que o farão, responsabilizando-os por crimes de guerra e outras violações graves de Direito Internacional Humanitário e de Direitos Humanos.”.
Consideram, também, que a criação de um mecanismo semelhante pode enviar uma mensagem para outras zonas da mesma região, como no caso da Líbia, onde os direitos humanos também estão a ser violados e onde também existem múltiplas interferências externas.
Embora esse mecanismo possa ter um caráter multilateral, os signatários também se manifestam a favor de uma atuação bilateral e denunciam, em particular, a contínua venda de armas por França ou pelo Reino Unido aos países envolvidos na guerra do Iémen, que acabam a ter como alvo a população civil iemenita.
Esta não seria uma ação propriamente inovadora: a Assembleia Geral das Nações Unidas criou um mecanismo semelhante sobre crimes de extremistas do Estado Islâmico na Síria, sendo que o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas também estabeleceu um mecanismo de investigação semelhante para Myanmar, depois da repressão verificada contra a comunidade muçulmana rohingya.
"Iémen, a maior crise humanitária do mundo"
Assim descrevem as Nações Unidas a situação vivida neste país do Médio Oriente.
Falando em dados: 82% da população necessita de ajuda urgente, 16 milhões de pessoas passam fome e 5 milhões estão em risco de morrer à fome.
Desde 2014, além do impacto da guerra civil, a população é assolada pela fome, por chuvas torrenciais e inundações e por pragas de doenças.
Como tudo começou?
Poder-se-ia dizer que os problemas começaram durante a transição política vivida durante a Primavera Árabe, mas verdade seja dita que as disputas internas têm origem numa já antiga divergência entre o noroeste do país, xiita e de maioria houthi, e o sul, de maioria sunita.
Contudo, a onda revolucionária vivida na altura evidenciou problemas antigos no Iémen e a vaga de protestos obrigou Ali Abdullah Saleh a renunciar ao poder, entregando-o ao vice-presidente Abdrabbuh Mansour Hadi, em 2011.
Esperava-se que a transição política, apoiada pelas monarquias árabes do Golfo, de onde se destaca a Arábia Saudita, trouxesse estabilidade e crescimento ao Iémen.
O país mais pobre da Península Arábica viveu, no entanto, uma realidade contrária, agravando a sua já dura realidade.
Em 2014, deu-se um volte-face: Ali Abdullah Saleh aliou-se aos seus inimigos houthis e avançaram sobre Saná, a capital, voltando o ex-ditador ao primeiro lugar no poder.
Os houthis tomaram, assim, a capital, mas o conflito aqueceu ainda mais em 2015, após a intervenção de uma aliança liderada pela Arábia Saudita, Estados Unidos da América e Emirados Árabes Unidos, levando a cabo diversos ataques aéreos contra os houthis, com o objetivo de restaurar o governo de Hadi.
Em 2017, nova reviravolta: Saleh seria morto a tiro pelos próprios houthis, seus ex-aliados, por alegada traição após ter dialogado com a Arábia Saudita, inimigo número um desta fação.
À margem de todo este cenário de guerra e desgovernação, a população iemenita passa grandes dificuldades, e nem a ajuda internacional é suficiente para combater o problema.
A fome: um problema quase universal
A malnutrição no Iémen é causada, principalmente, por todo este conflito, após a destruição dos meios de subsistência e da redução da capacidade das famílias para adquirir produtos alimentares - desde o início da guerra, os preços aumentaram 150%.
16 milhões de iemenitas sofrem de insegurança alimentar e quase metade da população, cerca de 14 milhões de pessoas, enfrenta atualmente “condições de pré-fome”, de acordo com a ONU.
Estima-se que 7,4 milhões de pessoas necessitam de serviços para tratar e prevenir a desnutrição, sendo 2 milhões destes crianças com menos de 5 anos, e 1 milhão mulheres grávidas ou em fase de amamentação - números cujo aumento é previsto pelas Nações Unidas.
De acordo com a coordenadora humanitária da ONU no Iémen, Lise Grande, o país arrisca-se a enfrentar “a maior fome do mundo em 100 anos”, com 5 milhões de habitantes a poder morrer à fome neste momento e 13 milhões se não houver o fim do conflito.
Também o aumento do preço dos combustíveis afetou, de forma severa, os setores da agricultura, o abastecimento de água, os transportes, a eletricidade, a saúde e o saneamento básico.
A água: um bem de luxo
A falta de acesso a água e a saneamento básico, mas também as débeis condições de higiene, são mais alguns dos efeitos da guerra no Iémen, contribuindo para uma vida já bastante complicada para a maior parte dos habitantes.
Mais de 50% da população iemenita precisa de assistência para aceder a água potável.
Também a subida dos preços deste bem e a redução do poder de compra dos cidadãos criaram barreiras económicas no acesso a este recurso fundamental.
A falta de acesso ao saneamento básico agrava o risco da propagação de cólera, uma doença que afeta imenso a região, e também da covid-19, como de outras doenças.
A educação: um acesso que é uma miragem
Ao nível da educação, os alarmes também soam, de acordo com os números da UNICEF.
Mais de 2 milhões de crianças não vão à escola devido à guerra e à pobreza vivida, ao mesmo tempo que 8,1 milhões necessitam de assistência urgente para garantir a continuidade das aulas.
Desde 2015, já se deram 231 ataques em escolas no país, com dois terços dos 170 mil professores iemenitas a não receberem o seu salário atempadamente, o que colocará ainda mais 4 milhões de crianças em risco de perder o acesso à educação pela procura de outras formas de sobreviver por parte dos professores.
Toda esta situação complica ainda mais a realidade vivida, com muitas raparigas em idade escolar a serem forçadas a casar, ao mesmo tempo que muitas crianças são recrutadas para trabalho infantil e guerrilhas armadas - mais de 3.600 nos últimos seis anos.
Mais de 2.500 escolas estão impossibilitadas de serem usadas, dois terços afetadas ou destruídas por ataques, 27% fechadas e 7% usadas para propósitos militares.
Quase metade de toda a população infantil (45%) alega já ter tido presença militar nas escolas e mais de 40% das escolas já suspenderam as aulas por mais de um ano.
No cômputo geral, os números ainda são mais assustadores, com 12 milhões de crianças a necessitarem de assistência humanitária urgente.
A saúde: um serviço em colapso
Quase 20 milhões de iemenitas (19, 7 milhões) necessitam de cuidados de saúde que não são assegurados, 14 milhões desses tratando-se de ajuda urgente.
Numa população já visivelmente afetada, crianças, idosos, mulheres e grupos marginalizados, como cidadãos portadores de deficiência, são os mais afetados, criando cenários de ainda maior desigualdade.
Ao mesmo tempo que faltam profissionais de saúde um pouco por todo o território, e estando os que trabalham no setor com salários em atraso na maior parte dos casos, a maioria dos equipamentos médicos nos hospitais não funciona ou está obsoleta.
“As doenças que têm cura transformam-se em sentenças de morte quando os cuidados de saúde estão suspensos”, referiu o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, em 2019, numa mensagem que se adapta à realidade neste país do Médio Oriente.
A segurança: ou a ausência desta
Aproximadamente 6,7 milhões de pessoas precisam de abrigo e de utensílios domésticos essenciais, num momento em que se estima que 4,3 milhões de pessoas tenham fugido de casa em busca de proteção e segurança.
Já 3,3 milhões mantêm-se deslocados e cerca de um milhão regressou à sua terra para encontrar as suas casas destruídas.
Cerca de um quinto das crianças alega já ter sofrido de ataques à sua segurança no caminho para as aulas, como tentativas de rapto, atos de violência e violações.
A crise económica: causa e consequência
O conflito no país destruiu os meios de subsistência e reduziu a capacidade das famílias para comprar alimentos e outros bens essenciais básicos.
De acordo com as Nações Unidas, a economia do Iémen contraiu 50% desde a escalada do conflito e as oportunidades de emprego diminuíram significativamente.
A depreciação drástica do Rial, a moeda do Iémen, entre agosto e outubro de 2018, afundou o poder de compra das famílias.
O défice do orçamento público também prejudicou o funcionamento dos serviços sociais básicos e o pagamento dos salários no setor público.
A balança de mercado também reflete uma situação preocupante, contudo, sendo um problema crónico no país: por exemplo, o Iémen, antes do início do conflito, já importava cerca de 90% dos produtos alimentares.
Como resultado, todo os fatores supramencionados, como o acesso a água, saneamento, saúde, educação e agricultura, foram ainda mais restringidos.
A ONU ajuda, mas ainda é insuficiente
As Nações Unidas têm tido alguma influência no conflito iemenita através do Programa Alimentar Mundial e da UNICEF, disponibilizando ajuda indispensável às populações e aliviando ligeiramente a crise humanitária no país.
A organização desempenha, igualmente, um papel político como intermediária: em 2018, conseguiu reunir as partes no conflito e assinar o "Acordo de Estocolmo", com várias exigências, entre elas, o cessar-fogo em torno da quarta maior cidade do Iémen, Hodeida.
Nas palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres, "o Iémen não pode esperar", e a situação vivida pela população iemenita parece dar-lhe razão.