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Gémeas chinesas geneticamente modificadas podem ter mutações genéticas inesperadas

Documento que detalha experiência polémica do cientista chinês He Jiankui divulgado pela primeira vez.

He Jiankui no laboratório em Shenzhen a 10 de outubro de 2018.
Mark Schiefelbein/ AP

Catarina Solano de Almeida

A manipulação genética realizada em embriões de duas gémeas chinesas para lhes conferir imunidade ao vírus VIH/sida terá muito provavelmente provocado mutações genéticas inesperadas, alertam cientistas que tiveram acesso pela primeira vez ao documento da experiência.


O anúncio chocou o mundo em novembro de 2018: o cientista chinês He Jiankui revelou em Hong Kong que tinha modificado geneticamente embriões numa fertilização in vitro, através da técnica CRISPR (um "corta e cola" de moléculas de ADN - ver caixa), com o intuito de alterar os genomas para lhes conferir imunidade natural contra o vírus VIH/sida.

As duas gémeas foram apelidadas Lulu e Nana, mas tanto elas como os pais permanecem anónimos, pelo que nada se sabe sobre como estarão hoje em dia.

A experiência foi vivamente condenada pela comunidade científica internacional, levou as autoridades chinesas a abrirem uma investigação e relançou o apelo para a interdição destas manipulações com embriões denominadas "bebés Crispr". Além de que era desnecessária neste caso, uma vez que já existem técnicas para impedir a transmissão do vírus de um pai seropositivo, como é o caso da lavagem de esperma.

He Jiankui não apresenta provas de que as bebés ficaram imunes ao VIH

Um jornalista da MIT Technology Review recebeu no início deste ano, de uma fonte não divulgada, o manuscrito do estudo que He Jiankui tentou que fosse publicado em revistas científicas de renome. Duas das mais prestigiadas, Nature e JAMA, recusaram e o documento permaneceu por publicar.

Depois de consultar cientistas e outros peritos, o jornalista Antonio Regalado publicou agora excertos do documento.

"Intitulado 'O nascimento de gémeos após manipulação genética para resistência ao VIH", com 4.699 palavras, o artigo ainda não publicado é da autoria de He Jiankui, o biofísico chinês que criou as gémeas geneticamente modificadas. Recebemos um segundo manuscrito que descreve a investigação em laboratório em embriões humanos e animais".

E o texto confirma aquilo que muitos cientistas suspeitavam: não mostra que a tentativa de mutação, sobre parte do gene CCR5, foi bem sucedida. Ou seja, He Jiankui vangloriava-se de ter conseguido um "avanço médico para controlar a epidemia de VIH" mas nada prova que tenha conseguido imunizar estes bebés contra o vírus.

Pior: os dados do estudo mostram que as gémeas sofrem de mutações genéticas inesperadas no seu genoma, alterações que têm consequências imprevisíveis.

He Jiankui ignorou as normas éticas e científicas

O jornalista da MIT Technology Review mostrou os manuscritos não publicados a quatro peritos - um especialista em direito, um médico de fertilização in vitro, um embriologista e um especialista em manipulação genética.

"Todas as opiniões são condenatórias. Entre elas: as principais reivindicações que He e a sua equipa fizeram não são apoiadas pelos dados; os pais dos bebés terão sido pressionados para concordar em participar na experiência; os alegados benefícios médicos são duvidosos; os investigadores avançaram na criação de seres humanos vivos antes de entenderem completamente os efeitos das manipulações que fizeram".

A técnica CRISPR é ainda muito imperfeita (ver caixa) e pode levar a alterações não desejadas. Neste caso, os investigadores alegaram ter pesquisado esses efeitos nos embriões num estádio inicial e encontraram apenas um - no entanto, seria impossível realizar uma pesquisa abrangente sem inspecionar cada uma das células do embrião.

A dificuldade de os pais terem acesso a qualquer tipo de tratamento de fertilidade pode tê-los motivado a participar na experiência, apesar dos enormes riscos para seus filhos, disse à MIT Technology Review Jeanne O'Brien, endocrinologista da Shady Grove Fertility.

O pai era seropositivo, condição que cria um estigma social na China e torna quase impossível o acesso a tratamentos de fertilidade.

Há também a questão de os investigadores chineses autores do documento terem tomado medidas para dificultar a identificação da família, omitindo os nomes dos médicos de fertilidade e terem indicado uma falsa data de nascimento - alegam ter sido em novembro de 2018 enquanto vários relatórios indicam outubro de 2018.


Admirável Mundo Novo

No início deste ano, no programa da SIC Admirável Mundo Novo, o investigador Bruno Silva-Santos falou-nos do potencial da CRISPR para evitar e tratar doenças hoje incuráveis e de como encara os perigos de um mau uso, que incluem os fantasmas de melhoramentos genéticos em bebés à la carte.

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