Incêndios em Portugal

Em Cedovim não arderam só a capela e os andores: o sr. Ilídio perdeu o trabalho de uma vida

Viveram-se horas de aflição em Cedovim na tarde de sexta-feira. As chamas chegaram num ápice vindas de Ranhados, uma das aldeias onde confluíram os grandes incêndios de Trancoso e Sátão, e queimaram o telhado de uma capela e os andores que estavam lá guardados, deixaram marcas no cemitério, logo ao lado, e arrasaram, noutra entrada da vila, a casa e oficina do senhor Ilídio, de 80 anos. Foram os moradores, antes da chegada dos bombeiros, a evitar uma tragédia maior.

Pedro Rebelo Pereira

Arderam a casa e a oficina de carpintaria e serralharia de Ilídio Sequeira, de Cedovim, no concelho de Foz Côa. Arderam as madeiras, os trabalhos que mais o orgulhavam, toda a maquinaria e até as ferramentas de mão. “Não sobrou nem um serrote”, completa a esposa, Maria de Fátima. “Só carvão, carvão, carvão.” “Nunca vi um incêndio tão forte na minha vida”, conta Ilídio. “Tão assustador”, interrompe Fátima. “Ainda estou meio baralhado. Meio, não. Todo baralhado. Ainda mal consegui dormir.”

“Já tenho 80 anos, mas quero manter-me ativo e a trabalhar. Faço o que faço não para vender, mas para não deixar enferrujar os meus parafusos. Não me quero sentado no sofá com esta idade, senão nunca mais me safo”, conta Ilídio Sequeira, carpinteiro e serralheiro, que estava em casa com a esposa quando as chamas chegaram: “Estávamos lá, só ali é que me sinto bem. Ardeu tudo, são para cima de 100.000 euros de prejuízo”, resume Ilídio, que espera que os apoios cheguem rápido, mas que sabe que não vão conseguir igualar uma vida de trabalho.

A primeira casa da vila, na entrada de quem vem de Ranhados, foi salva graças ao kit de combate a incêndios da Junta de Freguesia e a duas cisternas de vizinhos, mas a casa do senhor Ilídio, dezenas de metros à frente, não resistiu: “Consegui tirar os carros, mas tinha lá muito material inflamável: madeiras, tintas, diluentes, botijas de gás, máquinas.” “Veio uma rajada de vento tão forte, tão forte que dessa primeira casa até à do senhor Ilídio “foi um minuto”. “Tentaram tirar-me de lá, mas eu era a parte mais interessada.”

Um dos trabalhos arrasados foram os coches que tinha emprestado para o cortejo das Amendoeiras em Flor, em Vila Nova de Foz Côa, onde todas as freguesias do concelho desfilam. “Foi por um boa causa”: uma parte das receitas dessa participação foi destinada para o restauro do telhado da Igreja Matriz de Cedovim.

Apesar de todas as perdas, ainda sobra a Ilídio uma palavra de gratidão para quem o ajudou: “Os vizinhos, a GNR e os bombeiros fartaram-se de trabalhar lá, estou muito agradecido àquele pessoal. Só no domingo é que conseguimos resolver o incêndio.”

“Daquilo que eu vi à minha frente, achei que íamos ficar todos encurralados e que ninguém sobrevivia”

Esta segunda-feira, em Cedovim, pequena vila do concelho de Vila Nova de Foz Côa, saltavam imediatamente à vista três coisas: o cheiro a cinza e terra ainda em brasa, a força do vento que permite imaginar a velocidade das chamas três dias antes, e o trauma da população, ainda a fazer as contas aos estragos nos olivais, amendoais e soutos, e a tentar puxar atrás a fita dos acontecimentos.

Juliana Melo é presidente da Junta de Freguesia e também teve a sua casa ameaçada pelas chamas na sexta-feira: “Estive desde sexta até domingo às duas e meia da tarde no terreno”, conta-nos, interrompida por uma senhora no adro da Igreja: “Só não andaste mais porque ninguém mais te deixou, foste rebocada para casa.

Uma gravação áudio na segunda-feira permite ter a noção da força do vento (que empurrou as chamas) na sexta-feira anterior:

“Tínhamos ido ajudar ao incêndio em Ourozinho (concelho de Penedono), já não conseguimos voltar pela estrada de Ranhados. Fomos à volta e posicionámos o kit nessa entrada de Ranhados”, onde se salvou a primeira casa (ainda com marcas escuras no muro). Já tinha ligado à Proteção Civil de Foz Côa a avisar que “as coisas estavam a ficar feias”. Os bombeiros, empenhados noutras ocorrências que se iam multiplicando (incêndio na Mêda ameaçou também Horta e Touça, já no concelho de Foz Côa), acabaram por chegar cerca de duas horas depois: “Quando chegaram, o pior já tinha passado”.

Nessas horas de aflição, antes da chegada dos bombeiros, ao mesmo tempo que o fogo irrompia na entrada pela Estrada Nacional 331 (a tal de Ranhados), chegava também através do pinhal junto ao cemitério, a mais de um quilómetro de distância, e às traseiras de quatro casas onde fica o café da vila. O kit da Junta, as máquinas agrícolas e as carrinhas com bidões de água andavam a acudir todas as frentes, outras pessoas lutavam com giestas: “Era gente por todo o lado.” Água de rede é que não havia: o sistema da barragem de Ranhados colapsou e as pessoas ficaram sem água nas torneiras de casa.

As chamas ficaram a cerca de três metros das traseiras do snack-bar ‘O Diretor’. Na casa ao lado, vê-se uma árvore, já dentro do jardim, queimada. A vinha em frente a esse café, já perto do coração da vila, também ardeu. Durante todo esse tempo, "os idosos mantiveram-se em segurança no lar, com as janelas e persianas fechadas”, conta Ângela André, funcionária da instituição.

As chamas contornaram Cedovim e chegaram a ameaçar a norte, nas traseiras da Casa Grande (edifício brasonado devoluto há muitos anos) mas aí as labaredas contiveram-se: “O pastor tinha plantado milho, e o milho ajudou a que o fogo não subisse tanto.” Um vídeo aéreo, captado a partir de Cedovim, mostra a dimensão do incêndio.

A presidente da Junta diz que, relativamente aos prejuízos agrícolas, os apoios estarão dependentes do Governo, mas que as prioridades são a casa do sr. Ilídio e a capela do cemitério, e que "a Câmara de Foz Côa logo se prontificou a vir fazer o levantamento dos prejuízos”.

"Tivemos de fugir antes que as labaredas nos engolissem", relata Edite Estrela

Ao pé do Cemitério, as chamas apanharam duas casas devolutas (ao lado da casa de Edite Estrela e Rui Vieira, também ameaçada), ainda atingiram algumas campas e consumiram o telhado da capela que fica lá ao lado, bem como todo o interior, onde estavam guardadas as estruturas de madeira dos andores, usadas nas procissões religiosas. Foi precisamente Ilídio Sequeira, que agora perdeu tudo, quem, há 14 anos, tinha restaurado o telhado dessa capela.

As mesmas pessoas que combateram as chamas garantem: “Vai haver procissão”

À frente da Igreja Matriz de Cedovim fala-se do plano para erguer a procissão em honra de Nosso Senhor dos Aflitos, marcada para 7 de setembro. Como não há tempo útil para reconstruir as estruturas de todos os andores, os suportes de madeira vão ser cedidos por paróquias vizinhas, de Sebadelhe e Numão, que prontamente se disponibilizaram para ajudar. O andor do Senhor dos Aflitos, o principal, que “não tem igual”, já está a ser reconstruído em casa de Miguel Silva, homem que perdeu uma empilhadora no combate às chamas mas que, esta segunda-feira, ainda andava com uma Caterpillar a fazer trabalhos de rescaldo e prevenção onde ainda não ardeu.

Daqui a três semanas, a procissão, que dá a volta a Cedovim, vai passar por parte da paisagem queimada.

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