A Rússia quer a todo o custo travar o posicionamento pró-europeu e pró-ocidental da Moldávia e obrigar o país a permanecer na sua esfera de influência. Há 30 anos que o Kremlin mantém mais de 1.500 soldados e um conflito congelado no território moldavo da Transnístria, apontado como uma peça chave na Guerra da Ucrânia.
A SIC conseguiu entrar no território separatista em março do ano passado e encontrou ali um dos últimos resquícios da antiga União Soviética.
O peso de um território mais pequeno que o Algarve que se assume como país
A Transnístria faz parte da Moldávia, mas assume-se como um país, ainda que não seja reconhecido por nenhum outro, nem mesmo pela Rússia que ali mantém, há 30 anos, mais de 1.500 soldados e um conflito congelado.
No início dos anos 90 do século passado, após o colapso da União Soviética, morreram ali mais de 1000 pessoas quando os separatistas pró-russos da Transnístria recusaram integrar a Moldávia independente.
Com a ajuda dos russos, o território, mais pequeno do que o Algarve, venceu a guerra civil em poucos meses e declarou unilateralmente a independência. Tem uma moeda própria, parlamento – que se chama Soviete Supremo – e uma constituição.
A bandeira é a única do mundo que ainda ostenta a foice e o martelo. Para além de soldados, o Kremlin mantém, neste território separatista o maior depósito de armas da Europa de Leste, com cerca de 20 mil toneladas de munições e equipamento militar.
A SIC na Transnístria: um território altamente policiado
Eu e o repórter de imagem Paulo Cepa conseguimos entrar na Transnístria em Março de 2022, menos de um mês depois do início da guerra na Ucrânia. O território é altamente policiado e as autoridades locais não apreciam jornalistas, sobretudo estrangeiros.
Com a ajuda de um ativista local, entramos de táxi, levando apenas dois telemóveis. Ser apanhado a filmar na Transnístria sem autorização das autoridades locais dá prisão. Na fronteira, o veículo em que seguimos é revistado e temos de mostrar os passaportes.
As organizações de Direitos Humanos internacionais denunciam a ausência de oposição e de uma imprensa livre.
O ativista que recebeu ameaças de morte: “a propaganda russa está por todo o lado”
Viktor Pleshkanov, o ativista que se dispôs a ajudar-nos, já recebeu várias ameaças de morte e visitas da polícia local, por criticar as autoridades pró-Rússia nas redes sociais. Por serem vozes contestatárias, Viktor e a mulher perderam o emprego e ponderam deixar o território.
Viktor conta-nos que na Transnístria “não há forma de aceder aos canais de comunicação independentes moldavos” e que a propaganda russa está por todo o lado.” Aqui, a guerra na Ucrânia continua a ser apresentada como “uma operação militar especial”.
A televisão, como quase tudo no território separatista, tem a marca Sheriff. Criada por Viktor Gusan, um antigo membro da KGB, a empresa sheriff, que também tem bancos, operadoras de telecomunicações e fábricas de bebidas alcoólicas, ganhou destaque internacional por causa do clube de futebol, o sheriff, que integra a liga nacional da Moldávia, e fez história na Liga dos Campeões ao vencer o Real Madrid.
Para além do estádio onde decorrem as competições europeias, Viktor Gusan mandou construir, neste território pobre, um dos maiores complexos desportivos da europa, com dezenas de relvados, hotéis, piscinas, ginásios, e um hospital.
Numa faixa de terra que Moscovo sustenta com dinheiro, petróleo e gás natural, a estátua de Lenine ergue-se frente à sede do governo da capital, Tiraspol. Por toda a cidade há instalações militares e resquícios da antiga União Soviética.
Vestígios da União Soviética por todo o lado
Na rua principal, agitam-se ao vento as bandeiras de 3 regiões ocupadas pela Rússia - as únicas que reconhecem a Transnístria como país: Nagorno-Karabakh, no Azerbaijão, e Ossétia do Sul e Abcásia, na Geórgia.
Num território onde não há cadeias de fast food nem lojas estrangeiras, uma estátua de Harry potter ergue-se num campus universitário, como uma homenagem ao conhecimento. A guerra travava-se a apenas 20 minutos dali
Uma peça chave na guerra da Ucrânia
Em março de 2022, quando eu e o Paulo Cepa ali estivemos, a Transnístria, até então praticamente desconhecida, começava a surgir como uma peça chave na guerra da Ucrânia, um objetivo não declarado de Putin ao invadir o país vizinho. Isso mesmo viria a ser assumido pelo major-general russo Rustam Minnekae, que reconheceu a ambição de controlar o sul da Ucrânia, garantindo à Rússia um corredor terrestre até à Crimeia e “uma influência nas infraestruturas chave da economia ucraniana, como os portos do Mar Negro, por onde são feitos os embarques de produtos agrícolas e metalúrgicos”.
O general avançou que o plano incluía estabelecer uma ligação até à Transnístria, onde, nas suas palavras, também se registavam “casos de opressão da população de língua russa".
Em abril, quando estas declarações foram feitas, ficou claro que Vladimir Putin queria, não só reforçar a presença na Transnístria, mas também na Moldávia, país que não integra a NATO, mas fica colado à Bulgária, membro da Aliança Atlântica.
O plano de Putin que fracassou
O plano da Rússia para o Sul da Ucrânia tinha duas etapas. As forças terrestres avançavam para ocidente, a fim de capturar as principais cidades do sudeste ao longo da rodovia M-14 – Mariupol, Melitopol, Berdyansk e Kherson. Essa ofensiva seria apoiada por forças que progrediam para o norte da Crimeia. Tendo capturado a costa ao longo do Mar de Azov, as forças terrestres juntavam-se à infantaria da marinha da Crimeia depois do desembarque anfíbio em Odessa.
Conquistada a preciosa cidade portuária, alcançar a Transnístria seria para os russos um passeio no parque. Mas o plano de Putin fracassou a toda a linha. As forças terrestres não foram muito além de Kherson, nem conseguiram transpor Mykolaiv. Odessa foi poupada.
A desculpa para invadir territórios soberanos
A manutenção de conflitos congelados, como o que leva três décadas na Transnístria, é uma ferramenta importante da política externa e de segurança da Rússia. Ao território separatista moldavo somam-se Nagorno-Karabakh, no Azerbaijão, as regiões da Abkházia e da Ossétia do Sul, na Geórgia, tomadas por Moscovo em 2008, e as províncias orientais pró-russas de Lugansk e Donetsk, na Ucrânia, capturadas durante a invasão militar russa em 2014.
O pretexto para invadir territórios soberanos é sempre o mesmo: a alegada opressão das comunidades russófonas. A estratégia dos conflitos congelados assegura à Rússia a manutenção da influência perdida sobre estados reconhecidos internacionalmente e virados para Ocidente, enquanto salvaguarda a existência de territórios à margem das instituições legítimas e, como tal, da lei.
Dominadas por máfias, estas regiões são antros de corrupção de que o funcionalismo russo, altamente corrupto e intimamente ligado ao crime organizado, se alimenta. Com o objetivo de evitar sanções da comunidade internacional, a Rússia usa a Abkhazia e a Ossétia do Sul, para, através de esquemas complexos, financiar Lugansk e Donetsk.
Moscovo arrisca perder de vez o posto avançado que tinha no rio Dniester
Na Transnístria, as autoridades locais subsidiavam-se através de operações de contrabando cujas rotas incluíam, até ao início da guerra, a própria Ucrânia. Na República da Tchechénia, a brutal intervenção da Rússia fez do território um feudo pessoal do sanguinário Ramzan Kadyrov, que luta na Ucrânia, com as suas milícias, ao lado das tropas russas.
Nas últimas décadas, a Moldávia, que tem níveis de corrupção inversamente proporcionais ao país - pequeno de 2,5 milhões de habitantes - alternou governos pró-europeus e pró-russos.
Putin acreditou que podia fazer pender a governação moldava para o seu lado, usando a Transnístria como moeda de troca. Foi por isso que nunca reconheceu oficialmente o território como país. Se as forças russas tivessem estabelecido o tal corredor terrestre e chegado à Transnístria, Moscovo poderia usar o território separatista como joker. A Transnístria voltaria à esfera de influência moldava – ainda que com um estatuto especial – mas a Rússia recuperava peso político em Chisinau, a capital moldava. Mas, mais uma vez, Putin errou o tiro e Moscovo arrisca perder de vez o posto avançado que detinha no rio Dniester.
O alerta da Presidente da Moldávia
Na primavera passada – e à semelhança do que propôs à Ucrânia - a União Europeia ofereceu à Moldávia o estatuto de candidato a membro dos 27, uma pretensão antiga de Chisinau que tornará obrigatório o afastamento do poder dos partidos de influência russa – algo que Putin tem, a todo o custo, tentado impedir.
Em meados de Fevereiro, quase um ano depois do início da guerra na Ucrânia, a Presidente moldava, Maia Sandu, acusou Moscovo de estar a preparar um golpe de Estado no país - um alerta que já tinha sido dado pelo Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Sandu lembrou que as ações subversivas no país, por parte da Rússia, não são inéditas e procuram “derrubar a ordem constitucional e substituir o poder legítimo de Chisinau para colocar o país à disposição de Moscovo”.
A chefe de estado moldava, eleita em 2000, com uma vitória esmagadora, denunciou o envolvimento de cidadãos de várias nacionalidades — russos, bielorrussos, sérvios e montenegrinos —, com formação militar, mas disfarçados de civis, aliados à formação Shor, um partido pró-russo.
De acordo com os serviços de informação moldavos estão previstas "ações violentas, disfarçadas de protestos da oposição, com o objectivo de forçar uma mudança de poder em Chisinau”.
O que se passa em Chisinau?
O certo é que há várias semanas, desde que a Rússia reduziu drasticamente o fornecimento de gás natural à Moldávia, fazendo disparar os preços, há protestos semanais na capital, Chisinau.
A contestação tem a assinatura de um grupo recentemente formado, o Movimento para o Povo, e do Partido Shor, que detém 6 dos 101 lugares no parlamento da ex-república soviética.
A formação pró-russa é liderada por Ilan Shor, um oligarca moldavo exilado em Israel, depois daquilo que ficou conhecido como “o roubo do século”. Shor foi condenado por fraude, em 2017, por ter roubado mil milhões de dólares de três bancos moldavos. Integra ainda a lista das sanções do Departamento de Estado dos EUA, acusado de trabalhar com “oligarcas corruptos” e entidades de Moscovo para criar agitação política na Moldávia e minar a adesão país à UE.
Nas últimas semanas, a procuradoria anti-corrupção da Moldávia efetuou dezenas de buscas a casas de militantes do partido Shor que estiveram, segundo a instituição, "ativa e sistematicamente envolvidos na recepção e distribuição de dinheiro, para transporte e remuneração, dos participantes nas manifestações”.
A Rússia tem usado a dependência de petróleo e gás natural para manter a Moldávia de joelhos, mas a estratégia perdeu força desde que Maia Sandu, eleita através de uma plataforma anti-corrupção, chegou ao poder.
A instabilidade na Moldávia
A 21 de fevereiro deste ano, Vladimir Putin - que nega quaisquer intenções de atacar a Moldávia, como negou até ao fim que tivesse planos para invadir a Ucrânia - revogou um decreto de 2012 que reconhecia em parte a soberania de Chisinau na definição do futuro da Transnístria. Fê-lo alegando que a Ucrânia estava a “preparar uma provocação armada” contra a região separatista pró-Rússia da Transnístria, algo que Kiev se apressou a negar. Se há algo que a Ucrânia seguramente dispensa por estes dias é abrir uma nova frente de combate.
A instabilidade na Moldávia levou a primeira-ministra a demitir-se do cargo, no início de fevereiro, provocando a queda do Governo. Natalia Gavrilita justificou a decisão com os problemas desencadeados pela invasão russa da Ucrânia: uma crise energética aguda, o disparo da inflação e vários incidentes, como mísseis a atravessar o espaço aéreo do país. Mas a mudança de executivo não alterou o rumo da Moldávia rumo ao Ocidente.
Na primeira viagem oficial, duas semanas após ter assumido o cargo, o novo primeiro-ministro, Dorin Recean, foi à vizinha Roménia reafirmar alianças. Recean reuniu-se com o homólogo romeno, Nicolae Ciuca, e com o Presidente Klaus Iohannis para falar de segurança regional, cooperação económica e energética e o apoio de Bucareste a Chisinau no processo de adesão à União Europeia.
O desafio dos EUA
Num gesto de extraordinário peso simbólico, o Presidente norte-americano Joe Biden desafiou a Presidente Maia Sandu para estar presente numa reunião com representantes dos 9 membros da Europa Central e do Sudeste da Aliança do Tratado do Atlântico Norte, em Varsóvia, no final de Fevereiro – ainda que a Moldávia, comprometida com o estatuto de neutralidade, nunca tenha sido candidata a integrar a Aliança Atlântica. Mas nos últimos tempos, a ameaça iminente de uma invasão militar russa levou as autoridades moldavas a abrir uma discussão sobre esse estatuto, consagrado na constituição.
As forças armadas moldavas – escassamente equipadas - receberam há semanas, da Alemanha, os primeiros veículos blindados, enquanto a Ucrânia se ofereceu para fornecer apoio militar, caso Moscovo e os separatistas da Transnístria abram ali mais uma frente de conflito.
Por entre as muitas incertezas que pairam sobre a Moldávia, há algo que parece certo: após 3 décadas de ambivalência, Chisinau está decidida a cortar de vez com a influência opressora da Rússia.