No final da tarde do dia 23 de fevereiro, um professor e um grupo de estudantes do Middlebury Institute of International Studies de Monterey na Califórnia, observavam através do Google Maps congestionamentos de tráfego na fronteira da Ucrânia. Eram 18:00 na Califórnia e por isso 3:00 da manhã na fronteira da Rússia com a Ucrânia. De acordo com o The Washington Post, que relatou essa informação, esse grupo teve consciência de que a invasão da Ucrânia se tinha iniciado, muitas horas antes de ela ter sido noticiada, apesar de estarem do outro lado do mundo e estarem a utilizar uma ferramenta que mais de mil milhões de pessoas acedem todos os meses de forma rotineira através dos seus telefones.
A informação que o Google Maps recolhia dos carros militares russos era a mesma que nos é tão útil para perceber que trajetos escolher quando o trânsito se torna infernal. Fazemo-lo como se fosse normal termos essa informação em tempo real e não dispensamos o seu uso no Google Maps ou no Waze, que tendo sido adquirido pela Google em 2013, será normal que partilhe de muita da informação recolhida.
Estes serviços são um bom exemplo em que todos estaremos de acordo de que os benefícios de os nossos dados serem recolhidos superam em larga medida a vigilância a que nos sujeitamos. Ao estarem processados em grandes conjuntos estes dados, não nos expõem individualmente, e criam informação bastante útil às nossas deslocações com impactos muito positivos na nossa produtividade, na pegada ecológica e na redução da nossa ansiedade no trânsito.
No entanto o equilíbrio entre a utilidade ou a segurança que a vigilância eletrónica nos proporciona e a invasão da nossa privacidade que ela inevitavelmente provoca, nem sempre se alcança de forma tão pacífica.
Quando olhamos os negócios digitais vemos como positivo uma evolução tremenda na personalização do conteúdo, com algoritmos a decidirem o que queremos ver alimentados por todas as nossas escolhas anteriores, mas no mesmo sentido ficamos apreensivos se essa mesma personalização nos diminui a exposição aos que pensam de forma diferente de nós.
Vimos também que a personalização dos anúncios permite mostrar-nos os anunciantes e a suas ofertas mais de acordo com aquilo que de facto estamos interessados. É bom para nós e sobretudo para quem anuncia, ao mesmo tempo que possibilita que muitos negócios de nicho consigam identificar os seus potenciais clientes com pouco budget e com isso tornarem-se viáveis. Se é verdade que muitos destes novos negócios vêm substituir outros não significando um aumento do valor produzido, também é verdade que se são bem sucedidos ao substitui-los é porque são mais eficientes, e o crescimento económico também se faz por aí.
Para além das vantagens acima descritas também ao nível da segurança esta nossa total exposição aos dados recolhidos pelos devices que nos acompanham praticamente 24 horas por dia, funciona a nosso favor. Podem sinalizar, muito precocemente, alterações físicas que estejamos a sentir, podem encurtar o tempo de reação da ajuda médica e podem auxiliar as forças de segurança a protegerem-nos. De facto a realidade descrita no famoso “Minority Report” de Steven Spielberg com Tom Cruise, lançado em 2002, não nos parece hoje tão impensável, com algoritmos com capacidade preditiva suficiente para pré-reconhecerem um futuro crime, evitando-o e penalizando preventivamente o autor que estaria determinado a cometer o respetivo delito. Toda a história ainda nos parece total ficção, mas parece mais possível do que quando vimos o filme pela primeira vez.
Todos conseguimos dar muitos mais exemplos da boa utilização que esta enorme quantidade de dados que hoje já recolhem sobre nós pode ter. Com o 5G e com a capacidade de termos até 1 milhão de devices por km2 ligados à internet, esta realidade irá crescer exponencialmente, dando um enorme poder a quem os detém.
E é esta a questão que iremos seguramente discutir nos próximos tempos. Não se há vantagem nesta recolha massiva de informação mas quem a deve poder recolher, tratar e decidir que uso lhe dar.
Se quem está nos negócios digitais hoje se queixa da concentração que as big techs têm, quando olhamos o futuro próximo temos a certeza de que esta discussão ainda está no seu início, quando este poder vai muito mais além do que apenas a escolha de que anúncio ou conteúdo vamos ver.
Se os entusiastas da Web3, permitida pela blockchain, sonham como uma sociedade descentralizada em que ficaremos menos dependentes dos Estados e dos Bancos Centrais, deveremos entender que as empresas são dirigidas por pessoas que não são eleitas por nós. E ser um apaixonado pela tecnologia e por tudo o que de bom nos tem trazido não nos deve impedir de dedicar atenção a isso.