O arquipélago de Kiribati, no Pacífico, é um dos locais no mundo mais vulneráveis às alterações climáticas e ao aquecimento global, e mostra já bem visíveis alguns dos impactos mais dramáticos, incluindo na saúde das pessoas. A Médicos Sem Fronteiras (MSF) lançou atividades médicas para dar resposta a necessidades da população com enfoque especial na saúde materno-infantil.
Kiribati é o único país do mundo que toca em todos os quatro hemisférios. O pequeno território, composto por 32 atóis e uma ilha de corais elevada, estende-se numa zona localizada entre a Austrália e o Havai, cobrindo apenas o total conjunto de 811 quilómetros quadrados de terra firme numa vasta área do oceano Pacífico com 3,5 milhões de quilómetros quadrados. Demora cerca de uma semana a chegar de barco desde a ilha principal a algumas das ilhas mais orientais e, se não fosse um pequeno ajuste na Linha Internacional de Mudança de Data, estar-se-ia 24 horas para trás no relógio.
É um país deslumbrante, fascinante, e que enfrenta dificuldades. Metade da população total de Kiribati (cerca de 120 000 pessoas) vive na capital, Tarawa do Sul. A ilha principal – uma estreita faixa de terra com a forma de bumerangue – mal consegue acomodar todos os habitantes.
Com a elevada taxa de natalidade (26 nascimentos por cada mil pessoas) e com o crescimento urbano de Tarawa do Sul resultante da chegada de migrantes de ilhas mais distantes no arquipélago, esta sobrepopulação exacerba os problemas sociais e de saúde, assim como questões ambientais.
“Kiribati tem uma das maiores cargas de doenças no mundo, incluindo a mais alta incidência de lepra e uma das mais elevadas de tuberculose e de diabetes. E tem uma das mais baixas taxas de acesso a cuidados de saúde primários. É evidente que há necessidades que não estão a ser atendidas”, sublinha a coordenadora médica da MSF em Kiribati, Alison Jones. A isto acresce que os problemas ambientais no país também são significativos e continuam a aumentar.
A Médicos Sem Fronteiras iniciou atividades médicas em Kiribati em outubro de 2022. A equipa da organização médico-humanitária a trabalhar neste arquipélago do Pacífico centro-ocidental inclui pediatra, parteira e profissional de medicina geral, e está a prestar apoio ao Ministério da Saúde e dos Serviços Médicos para reforçar os cuidados de saúde materna e neonatal.
Um dos sítios no mundo mais vulneráveis ao clima
Além de tudo o que fragiliza a situação da população de Kiribati (ou os i-Kiribati, designação dada às pessoas nativas do país), as alterações climáticas constituem também uma ameaça. A grande maioria dos agregados familiares reportou impactos climáticos já em 2016, com 81% afetados diretamente pelo aumento do nível do mar.
De facto, a pequena massa de terra firme de Kiribati está particularmente vulnerável à subida do nível das águas, visto que o ponto mais alto de Tarawa se encontra a apenas três metros acima do nível do mar. As provas de que a ilha está a encolher devido à erosão são claras e vísiveis por todo o lado. Em algumas zonas, árvores desenraizadas jazem onde antes havia praias e locais de piquenique. Casas são abandonadas conforme a água se aproxima e alinham-se sacos de areia na costa como linhas de proteção. Nas marés altas de lua cheia, as ondas chegam aos caminhos principais e inundam casas.
A par da erosão, estão também a aumentar a salinização do solo e das fontes de água subterrâneas, assim como as temperaturas, a frequência das “marés reais” (termo para marés excecionalmente altas) e as secas. Em Kiribati dá-se o que se convencionou chamar de “paradoxo da água”: a par da ameaça da subida dos níveis do mar e das inundações, a população é afetada pela escassez de água potável. Em Tarawa, a água dos poços está contaminada pela água do mar e pela gestão inadequada de resíduos.
Outro problema resultante do encolher do território é a ameaça que tal acarreta para a agricultura. A maioria dos habitantes de Kiribati dedica-se à agricultura de subsistência, especialmente nas ilhas mais distantes, mas esta atividade tem vindo a diminuir nos anos recentes.
A pesca também tem sido afetada. Com os impactos da sobrepopulação e do clima na pesca nos recifes, as atividades de pesca costeira deixarão, muito em breve, de chegar para satisfazer as necessidades alimentares da população. É estimado que Kiribati venha a precisar de 50% mais comida em 2030 para dar resposta à procura interna.
A insegurança alimentar não se deve exclusivamente ao clima extremo; os estilos de vida estão a mudar. Muitos jovens deixaram de produzir e de preparar os alimentos da forma tradicional, preferindo antes a conveniência das comidas importadas. Os vegetais e fruta frescos não são muito acessíveis. Uma abóbora pode custar 20 euros e uma melancia 32 euros – preços muito longe do alcance da maioria das pessoas, tendo em conta que o salário mínimo é cerca de um euro por hora. Não é surpreendente, assim, que quase todos os i-Kiribati não ingiram as doses recomendadas de fruta e vegetais.
O abandono das dietas tradicionais de peixe, babai (taro-dos-pântanos, planta tropical muito popular na Polinésia), fruta-pão e cocos – e com carne de porco para celebrações especiais e festejos – tem consequências para a saúde da população. Para a maioria das pessoas em Kiribati, o arroz é agora o alimento-base, a que se somam bebidas açucaradas importadas, assim como comida enlatada e processada.
É estimado que 38% dos homens e 54% das mulheres sofrem de obesidade, e que entre as crianças menores de cinco anos 25% tem peso inferior ao normal. No que toca aos riscos de doenças não-transmissíveis, 70% dos adultos com 18 a 69 anos têm três ou mais.
A crise climática é uma crise de saúde
A saúde humana depende da saúde e sustentabilidade ambientais. E em nenhum outro lado isto é mais evidente do que para as pessoas que vivem dentro dos limites de uma ilha.
“Aqui há uma colisão entre a saúde planetária e as doenças não-transmissíveis que não se observa em mais lugar nenhum”, frisa o perito da MSF em doenças tropicais e saúde planetária Lachlan McIver. O médico considera que os pequenos Estados insulares são como “os canários na mina de carvão das alterações climáticas”.
Na região do Pacífico, 75% das mortes devem-se a doenças não-transmissíveis, as quais constituem a principal causa de problemas de saúde em Kiribati. As taxas de diabetes no arquipélago são elevadas e estão em crescendo: nas mulheres entre os 45 e 69 anos é de 44%.
Além de uma dieta de baixa qualidade, a hipertensão, a falta de exercício físico e o tabagismo contribuem para estas elevadas incidências de doenças.
“A diabetes nas grávidas é especialmente preocupante, uma vez que a doença pode ser de elevado risco para as mães e para os bebés, que precisam de ter acesso a atenção especializada para tratamento durante a gravidez, o parto e o pós-parto”, explica a parteira Sandra Sedlmaier-Ouattara, responsável médica do projeto MSF em Kiribati.
O trabalho da organização médico-humanitária no arquipélago tem o objetivo inicial de melhorar a deteção e tratamento da diabetes e da hipertensão relacionadas com a saúde materna nas ilhas de Gilbert do Sul, com base em Tabiteuea Norte.
Atualmente, as grávidas de alto risco nas ilhas mais distantes têm um acesso limitado a cuidados secundários e veem-se obrigadas a deixar as famílias para serem transferidas por avião para a capital, Tarawa, de forma a receberem cuidados especializados até ao momento do parto, e depois se assim for necessário.
“As nossas atividades nas clínicas de cuidados primários incluem a melhoria dos cuidados pré-natais em geral, com enfoque adicional na deteção precoce da diabetes e da hipertensão. Providenciamos também apoio no parto, na fase pós-parto e nos cuidados neonatais no Hospital do Sul de Kiribati”, descreve Sandra Sedlmaier-Ouattara. “Para ter impacto a longo prazo e para ter sustentabilidade, as nossas atividades centram-se na formação e mentoria do pessoal médico”, junta.
Outras atividades incluem o reforço dos cuidados prestados aos recém-nascidos nas primeiras 24 horas de vida, envolvendo a formação e treino de parteiras e de profissionais médicos e de enfermagem, assim como a gestão de casos, em Tabiteuea Norte e em Tarawa. A MSF visa ainda providenciar apoio em melhorias nas infraestruturas hospitalares do hospital de Tabiteuea Norte, disponibilizando energia renovável, água potável e gestão de resíduos, além de ajudar nos encaminhamentos e nas capacidades cirúrgicas.
As ilhas do Pacífico são dos locais mais vulneráveis ao clima em todo o planeta. Kiribati está a mostrar ao resto do mundo alguns dos mais tangíveis impactos das alterações climáticas. É imperativa uma ação conjunta pela saúde planetária e pela saúde de todas as pessoas.