Inicialmente, tinha a intenção de atravessar o sul do deserto da Namíbia entre Aus e Siesrem seguindo uma estrada de areia, mas após várias pessoas me aconselharem a evitar essa rota, devido a uma tempestade iminente, decidi seguir pelas estradas de terra. Outra boa decisão.
No dia seguinte, depois de já ter percorrido 10 km debaixo de uma fina chuva, um arco-íris surgiu no céu e pensei: “vai ficar tudo bem, a chuva vai parar e eu vou chegar ao meu destino”. Mas o meu desejo não foi suficiente.
“Já não me restavam forças para continuar”
O que se seguiu foi uma tempestade aterradora. A intensa chuva, o frio extremo e os ventos fortes, dificultaram a minha pedalada durante 20 km. Estava completamente gelado, sem sentir as pontas dos meus dedos e com os pés doridos e molhados. Já não me restavam forças para continuar. E foi nesse momento que me vi diante de uma difícil decisão: voltar atrás 30 km, ou arriscar os restantes 85 km até à próxima aldeia, ou montar a tenda e esperar a bonança?
Qualquer decisão que eu tomasse me faria enfrentar a terrível tempestade que se abatera. Foi então que, enquanto lutava para pedalar e tomar uma decisão, reparei num abrigo que parecia ter aparecido à minha frente. Era a quinta de Leslie Campbell, a Barby Farm.
“Nem penses! Tu vais morrer! Fica aqui”
Leslie foi a minha salvação. Ao ver-me aflito, ofereceu-me um café quente e roupa seca. Ao perguntar-lhe qual o caminho para a aldeia que estava a 85 km de distância, respondeu-me: "Nem penses nisso! Tu vais morrer! Fica aqui". De facto, a tempestade piorou nas horas seguintes com a temperatura a atingir os 5 graus negativos e o vento e a chuva a aumentarem de intensidade. Leslie era a única pessoa que vivia naquele deserto. Não havia mais ninguém antes da próxima aldeia.
A tempestade durou dois dias, e, durante esse período, fiquei num pequeno albergue, na quinta do Leslie.
Ali conversámos durante horas acompanhados de um fantástico café. Falámos de amor, desilusões, aventura, família, trabalho, guerra, infância, etc.
Todos os assuntos que surgiam eram criadores de laços. Parecia que conhecia há anos aquele homem que me aparecera no caminho, e nunca deixou que me faltasse comida, companhia e cobertores para me manter quente.
Leslie, um escocês de 76 anos, é a terceira geração a nascer naquela quinta. A história da sua família remonta a 1844, quando o seu bisavô, um criminoso que tentava fugir de barco da Escócia para a Austrália, naufragou na costa do Cabo e nadou até à costa, ali assaltou um sul-africano. Fugiu, atravessando o deserto da Namíbia, até chegar ao local onde hoje existe a propriedade. Comprou centenas de hectares, com o dinheiro roubado. E começou assim o negócio familiar de venda de carne.
Um resmungão de 76 anos emocionado
Leslie tem a típica personalidade da sua geração. Homem sensível, porém incapaz de o demonstrar. Conta-me que foi criado numa cultura onde era valorizado não mostrar emoções. No entanto, ao longo dos dois dias que passámos juntos, deixou transparecer a sua sensibilidade em vários momentos. Falava de forma rude e sempre com um tom ameaçador, características de um típico resmungão de 76 anos.
Num determinado momento, enquanto Leslie cortava e temperava carne de cabra, contei-lhe a minha história de vida, incluindo a situação de desemprego após ganhar o World Press Photo. Ele pediu para ver a fotografia premiada na altura. Mostrei-lha. Leslie ficou em silêncio largos instantes, deixando o som da chuva e do vento entrarem.
Subitamente, vi uma lágrima no seu olho. Fiquei parado naquele silêncio. Foi inexplicável ver aquele homem emocionado com uma das minhas fotografias.
A fotografia, que retrata jovens guineenses a jogar à bola num antigo complexo militar português, fez com que ganhasse o primeiro lugar na categoria Daily Life do World Press Photo.
O retrato que irei recordar para sempre
“Esta noite tu vais cozinhar, e nem penses em dizer que não”, disse-me. O tempo passou sem que eu pensasse em tirar uma fotografia dele provando que, às vezes, viver o momento é mais importante que uma fotografia. Mas não podia continuar a minha jornada sem, antes de partir, lhe pedir para me deixar tirar um retrato. “No F***ing way”. No entanto, depois de muito insistir, concedeu-me o retrato que irei recordar para sempre. Ele, sentado, com a chávena de café na mesa e o seu cigarro, acabou por aceitar.
O deserto ficará na minha memória pela sua beleza, imensidão e estradas infinitas. Mas como em outras tantas histórias, são sempre as pessoas a habitarem lugares especiais da nossa memória. E Leslie será sempre lembrado como um amigo que me salvou da tempestade.
Atravessar África numa bicicleta elétrica para promover o uso dos meios de transporte sustentáveis, reduzir a pegada ecológica e conscientizar a sociedade para as alterações climáticas. Daniel Rodrigues relata a viagem De Capetown ao Cairo, pioneira, de 14 mil quilómetros.