É a lei de Lavoisier aplicada a um dos principais componentes do calçado feito em Portugal. Aqui as solas velhas não se perdem, mas transformam-se em nova matéria prima.
"Nem os empresários, nem a sociedade civil têm a noção do lixo que as empresas fazem. E do bem que nós conseguimos fazer com o lixo", conta António Ferreira, sócio-gerente da Bolflex. "É possível pegar nos resíduos de borracha e dos sapatos, trabalha-los, e dar-lhe uma vida nova."
Um processo conhecido como desvulcanização, que conseguiu agora a patente europeia, mas na empresa de António Ferreira a reciclagem de borracha já começou há 11 anos.
"Toda a gente dizia que eu era louco, que era impossível. O que é certo é que já há uns anos a esta parte deixamos de enterrar matéria prima. Se não fosse uma pessoa que acreditasse aquilo já tinha fechado há muito tempo. Ela já ardeu por duas vezes. Já lá gastei muito dinheiro. A sorte é que a casa mãe, a Bolfex, trabalhou sempre muito bem e eu fui gerindo as contas", explica.
“Basta vir uma moda”
Quanto às contas da Rubberlink, o resultado de 2024 aponta para a reciclagem de mais de mil toneladas de borracha. Um bom número, mas que, ainda assim, está muito aquém da capacidade da fábrica, que pode tratar quatro mil toneladas por ano.
António mostra-se confiante que acabar com o desperdício pode ser uma tarefa fácil. “Basta vir uma moda, uma obrigação, um incentivo.”
João Monteiro, CEO da A.LI.ÁS, diz que há coisas boas a serem bem feitas.
"A indústria tem-se modernizado, tem adotado praticas mais sustentáveis. Mas de facto um produto que seja completamente sustentável em todo o seu processo produtivo, ainda não há assim tantos exemplos quanto isso."
O caminho da sustentabilidade
Foi a pensar na sustentabilidade em cada etapa de produção - desde a fábrica até ao pé do cliente - que a A.LI.ÁS chegou ao mercado, através do recurso a materiais reciclados e materiais naturais.
"Nós já pensamos este sapato para no fim do seu ciclo de vida ser extremamente fácil de desmontar os seus diferentes componentes e voltar a reintroduzi-los no processo produtivo, ou reciclando-os", explica João. “Ainda não estamos numa fase em que possamos recolher todos os sapatos que estamos a vender, mas é o nosso objetivo um dia ter essas estruturas que permitam fazê-lo e aí atingir uma verdadeira economia circular.”
É a indústria no caminho da sustentabilidade, com muito para percorre até o negócio ser também ele sustentável.
"Nós tentamos ter os materiais mais perto de nós possível. Dois dos principais são produzidos em Portugal. Há um ligeiro acréscimo do preço, pela questão dos materiais serem sustentáveis. É um desafio, mas acreditamos que vai dar frutos no futuro", assegura o CEO.
E a colheita desses frutos passou também pela estreia na MICAM, a maior montra internacional do setor
EUA, Ásia e os novos mercados
"Os Estados Unidos apresentam-se como um mercado interessante, mas também olhamos para o caso da Ásia para conseguirmos crescer e procurarmos novos mercados" conta Marcelo Santos, CEO da Softwaves.
"Apresentar inovação, apresentar novos conhecimentos, será esse um pouco do caminho que Portugal irá seguir na indústria do calçado", diz o diretor comercial da Combocal, Ricardo Pinto.
Calçar os sapatos da sustentabilidade e da modernização são os desafios do setor que caminha cautelosamente em direção ao futuro, após um ano de contenção em que foi necessário dar alguns passos atrás.
No ano passado, as exportações recuaram 11% em quantidade e 8% em valor. Foram 66 milhões de pares de sapatos vendidos por 1.8 mil milhões de euros.
"No 1 semestre de 2024 não vislumbramos alterações muito significativas relativamente a 2023. Continuou a ser um semestre difícil, muito exigente, com retração no consumo, com redução das importações de praticamente todos os players internacionais", afirma Paulo Gonçalves, porta-voz da Apiccaps. "O setor do calçado termina o primeiro semestre com uma quebra de 2% em quantidade e cerca de 15% em valor".
O abrandar da inflação e a redução das taxas de juro são sinais positivos para um setor que encara 2024 como um ano de transição.
"Nós estamos a investir numa indústria de futuro. Estamos a renovar completamente a indústria do calçado em Portugal. Arriscaria dizer que estamos a criar uma nova indústria do calçado em Portugal, os investimentos na área da digitalização, da automação, da sustentabilidade", indica.
Fernando Ferro, CEO da Fernando Ferro & Irmão, diz que há muita estrada a percorrer, mas que estão no ritmo certo. "Faz-se muita coisa fora, em Portugal nós importamos muita coisa e o objetivo é nós não importarmos é conseguirmos fazer cá".
Em Milão, Fernando Ferro mostrou ao mundo alguma da tecnologia de ponta que produz em Estarreja, com o foco na automação e na robotização da indústria.
"Temos a manipulação de formas, temos a colocação de peças com robot, temos a cardagem automática com robot ou com laser, que em muitos casos é feita a marcação manual por dois operadores. O mesmo exemplo serve para aplicar colas ou solventes. ou mesmo aplicação direta de peças na forma", explica.
"A robotização e automação do setor do calçado não começou agora, já nos anos 90 tínhamos empresas em Portugal que tinham robots a funcionar no seu chão de fabrica. A grande mudança é que os robots tinham de ser constantemente reprogramados para diferentes modelos que viessem", diz Florbela Silva, do Centro Tecnológico do Calçado de Portugal. "Hoje em dia, através da incorporação de outras tecnologia, como por exemplo a inteligência artificial, a visão artificial, os robots identificam o modelo, o pé, o tamanho que vem na linha produtiva e já sabem o que tem de fazer".
Esta é uma das 45 empresas que integram o projeto FAIST financiado pelo PRR. Um investimento de 50 milhões de euros criado para dar resposta às necessidades tecnológicas do setor.
"Fabrica ágil inteligente sustentável e tecnológica (FAIST) são os grandes chavões", diz. "Uma grande parte deste projeto é também dedicada à qualificação e capacitação de pessoas e empresas".
Fernando Ferro diz que é preciso tentar retirar esses recursos que podem ser substituídos pela robótica. João Monteiro reitera que existe uma dificuldade em arranjar pessoas para trabalhar, e que renovar as pessoas que trabalham no setor é muito complicado.
O trabalho qualificado triplicou em 20 anos. Só que às vezes a modernização pode ser sinónimo de desemprego, sobretudo num setor que não é imune à conjuntura internacional.
"É normal que depois de ano e meio complexo exista algum desemprego no setor industrial. Mas existe desemprego numa indústria que vivia uma situação de pleno emprego", diz o porta-voz da Apiccaps. "Desde 2019 o cluster do calçado estabilizou o número de trabalhadores à volta dos 42 mil. Neste momento registamos 91% dos trabalhadores já são profissionais qualificados".
Dos 22 mil milhões de pares de sapatos produzidos anualmente em todo o mundo, 90% vêm do continente asiático, de países como China, Vietname ou Indonésia, quase sempre com preços mais competitivos.
Haverá espaço para um pequeno produtor como Portugal?
"Há muito medo de apostar em marcas novas, sentimos isso. Temos feito alguns testes, temos aberto portas, mas a um ritmo bastante cauteloso", confessa João Monteiro.
Fernando Ferro mostra-se mais esperançoso. “A expectativa é que as coisas arranquem e que por aqui ou por ali... Temos essa veia portuguesa que nos faz andar para a frente e não desistir.”
"Portugal tem sucessivamente vindo a conquistar terreno aos seus dois grandes concorrentes internacionais: Itália e Espanha. Inclusivamente, nos dois últimos anos, ao nível da produção, já superamos Espanha e já estamos relativamente perto de Itália, o que era impensável há 20 anos atrás", reforça o porta-voz
Consolidar a posição na Europa e partir à conquista de novas latitudes como os EUA, Coreia ou Japão, são os objetivos do setor, que segue com cautela, mas confiante, rumo a 2025.