Hábil negociador e cada vez mais experimentado no mundo do futebol, António Salvador não esperou pela abertura oficial do mercado de inverno para lançar os seus dados para a mesa de jogo.
Numa entrevista concedida ao Canal 11 na véspera de Natal, o presidente do Sporting de Braga, com o arrojo que lhe é característico, qualificou o braço de ferro com Rui Costa como o “melhor ato de gestão” das duas décadas de liderança dos minhotos.
No último verão, os campeões nacionais tentaram adquirir Ricardo Horta e esbarraram no preço, com os bracarenses a exigirem o passe de um jogador do universo encarnado além de 20 milhões de euros.
Estas duas sólidas condições acabaram por inviabilizar o regresso do capitão dos guerreiros ao estádio da Luz, num desfecho marcante para todas as partes e que define muito do que é o futebol português.
Ao longo dos últimos anos e sobretudo nos mandatos mais despesistas de Luís Filipe Vieira, se houve coisa que o Benfica se habituou a fazer foi gastar 20 milhões e, em alguns casos, muito mal gastos.
Raúl de Tomás, Julian Weigl, Everton Cebolinha e... Arthur Cabral foram contratados pela referida fasquia e, à exceção do médio germânico (e mesmo assim...), revelaram-se todos uma deceção. É verdade que o ponta de lança adquirido à Fiorentina pode ainda justificar o investimento se der sequência ao acerto evidenciado frente ao Famalicão. Só isso pode evitar um percurso curto em Lisboa.
Há quase um ano, em fevereiro de 2023, Cabral brilhava na Pedreira com a camisola da Fiorentina (dois golos na goleada de 4-0 na primeira mão do playoff de acesso aos oitavos de final da Liga Conferência), mas se fosse hoje sugerido por Rui Costa no pacote aquisitivo de Horta é de admitir que António Salvador pensasse duas vezes no melhor marcador da Liga (Simon Banza) e no suplente Abel Ruiz.
No fundo, isso era dar razão aos três maiores emblemas de Portugal. Qualquer um deles acha caro um jogador que no campeonato continua a fazer história pelo Braga (86 golos em 238 jogos, dados do “ZeroZero”) e que completou diante do Casa Pia um total de 350 desafios (pautados, segundo o Transfermarkt, por 120 golos e 69 assistências) com a camisola dos arsenalistas.
Dizem que é o Carmo
Esta visão não impediu a entrada dos RDTs na Luz nem tão-pouco refreou Pinto da Costa na hora de pagar... 20,2 milhões de euros por um David Carmo recém-relegado para a equipa B. Podem dizer que é o Carmo ou o Karma que vai dar igual para quem só lucrou. Aliás, bem vistos todos os negócios, este último terá sido mesmo o melhor ato de gestão de Salvador porque, encargos de intermediação à parte, a transferência do corpulento defesa-central para o Dragão ainda representa o recorde despesista de FC Porto e... Sporting.
Os dragões, nas operações de Óliver e Imbula, aproximaram-se bastante do referido valor (ambos custaram 20 milhões de euros “certos”), enquanto os leões apenas entraram nesse campeonato quando perceberam que tinham de fazer o que nunca tinha sido feito em Alvalade para garantir o concurso do esmagador Gyokeres.
O internacional sueco só saiu do Coventry a troco de 20 milhões, “pulverizando” o montante que Frederico Varandas tinha desembolsado na compra de um avançado. Em 2020, no auge de todos os sonhos e objetivos permitidos a Rúben Amorim, um tal Paulinho foi contratado ao... Sporting de Braga por 16 milhões de euros, precisamente a mesma verba que Vieira fez chegar a Salvador no âmbito da contratação de Rafa Silva no já longínquo verão de 2016.
No espaço de quatro anos, o Sporting de Braga vendeu dois atletas aos grandes de Lisboa pelo mesmo preço, beneficiando da juventude (22 anos) de um Rafa que fez parte da conquista história do Europeu de França. Paulinho, quando saiu para acompanhar Amorim, já tinha 28 anos e tal como agora nenhum lastro de vulto na seleção.
Livre como uma braçadeira
Ainda hoje, depois de Gyokeres e Hjulmand (18 milhões de euros), Paulinho dá o nome à terceira mais alta compra de sempre do Sporting, enquanto os mesmos 16 milhões, no caso do Benfica, só chegariam para Rafa se sentir uma espécie de suplente de ouro. De Enzo Fernández a Carlos Vinícius, já se apresentaram na Luz 11 reforços mais caros do que o extremo que despontou no Feirense e que é desde ontem um atleta livre e em condições de assinar por qualquer clube.
A seis meses de finalizar contrato, o camisola 27 prepara-se, apesar de já confessar “saudades”, para deixar o Benfica a preço zero, o que remete para as tais especificidades do futebol português e deixa perceber como Rui Costa e seus pares não conseguiram ver o filme todo quando se recusaram a dar 20 milhões por um atleta que cumpriu 29 anos em setembro.
Com Di María a ultimar em Rosário o regresso definitivo à América do Sul, David Neres a ser uma incógnita em termos de recuperação, Gonçalo Guedes a correr sérios riscos de regressar a Inglaterra e... Rafa a acelerar para o Catar ou sabe Deus para onde, as águias dificilmente encontrarão um outro Ricardo Horta no mercado.
Ricardos mais novos há às dezenas ou às centenas (basta ir à Argentina), simplesmente não vêm equipados com um chip no coração a dizer que amam o Benfica e que o sonho de uma vida é entrar na Luz com a braçadeira de capitão.
Até nisso Rui Costa encontraria um sucessor à altura, porque Otamendi, António Silva, João Neves e João Mário podem a qualquer momento sair… juntos.
Horta, nesta janela de transferências ou na próxima, chegaria sempre para “fechar” a carreira.
Em certo sentido, podia ser visto como o... Salvador do Benfica. E também ele estaria a fazer o melhor ato de gestão da sua vida desportiva.