Depois de tantos anos, confesso que continua a incomodar-me a eterna acusação de que a arbitragem é uma classe corporativista. Acho a visão injusta e desfasada da realidade.
É óbvio que, sendo os árbitros um alvo fácil (o seu trabalho é mediatizado e escrutinado ao limite), há uma tendência natural para a defesa. Para fecharem-se no casulo, mantendo-se longe dos ataques e insultos de que são alvo com frequência.
Afinal de contas, quem não se sente não é filho de boa gente. Os árbitros falam a mesma língua, estão expostos aos mesmos dilemas, vivem os mesmos problemas. É natural que se protejam como podem e sabem.
Mas esse "espírito de corpo", tão diabolizado cá fora, não é diferente daquele que, por exemplo, une enfermeiros, polícias, taxistas, jornalistas, médicos ou professores. Todos os que a dado momento sentem-se beliscados nas suas funções ou integridade, reagem. Defendem-se a uma só voz.
Diferente, bem diferente, é a defesa do indefensável. É o extremismo. Aí sim, estamos a falar de outra coisa. De um corporativismo cego e nocivo, incapaz de encaixar crítica construtiva ou aceitar visão que contrarie a sua. Se ainda há pessoas assim na arbitragem, jamais evoluirão. Jamais darão o passo seguinte.
Enquanto ex-árbitro com funções distintas, passo pelo mesmo dilema. Todos os dias, de forma mais ou menos camuflada, sou apelidado de corporativista. Há sempre quem aponte o dedo a tudo o que digo ou escrevo, achando-o demasiado protetor. Demasiado defensivo. Isso demonstra apenas a cegueira que o futebol impõe aos mais indefetíveis.
Quem analisa lances e avalia o desempenho dos árbitros tem que ser o exato oposto daquilo que é tantas vezes acusado. Se assim não fosse, seria incapaz de elencar erros ou discordar de decisões. Seria incapaz de expor o ex-colega a opinião negativa, que tantas vezes lhe traz problemas.
Como é óbvio, nem toda a análise é negativa, nem todo o comentário é crítico. Os árbitros também acertam (muito), também tomam excelentes decisões, também merecem o benefício da dúvida em vários momentos de jogo. Afirmá-lo publicamente não é defender irracionalmente a classe, é dizer a verdade e essa só é bem aceite quando valida a opinião dos outros.
Se pensarem bem, verão que os comentadores de arbitragem são, porventura, os maiores "inimigos" dos árbitros na atualidade. Afinal de contas, estamos a falar de ex-colegas que passaram pelos mesmos dramas, cometeram os mesmos erros e que hoje têm como missão expor publicamente as suas falhas.
Para alguns não haverá nada mais injusto do que isso, mas a maioria entenderá que a função pressupõe distância, frieza e capacidade de analisar situações técnicas sem ver quem está envolvido. Sem se importar com o nome do clube ou do árbitro em questão. Na essência, não é muito diferente do que fazem observadores e dirigentes de arbitragem, também eles um dia árbitros e hoje em missões distintas.
Pode até haver algum corporativismo no setor da arbitragem, mas sem grandes exageros. Esse fica para quem comenta com o emblema do clube ao peito ou para quem simplesmente é incapaz de aceitar uma crítica e ver o óbvio, sem logo lançar duas ou três granadas na direção de quem ousou opinar. E há tanta gente assim no mundo da bola…
O ex-árbitro internacional Duarte Gomes é comentador da SIC e tem um espaço de opinião no site da SIC Notícias.