Chamar a música tradicional e convidá-la para fazer parte do presente é o objetivo dos Bicho Carpinteiro. A banda mostra como o antigo pode ser uma festa - até numa discoteca - se for tocado nas cordas certas, com as batidas ritmadas a acompanhar. O primeiro álbum convida a testemunhar, ao vivo em 2024, o Portugal antigo embebido no presente, e como se pode dançar com as lenga-lengas dos nossos antepassados.
Os Bicho Carpinteiro têm quatro elementos que compõe a banda, e cada dupla está inserida na sua própria temporalidade.
A viola beiroa, de Castelo Branco, e a viola toeira, de Coimbra, trazem as raízes da tradição ao álbum homónimo - o primeiro – da banda. Já Rui Rodrigues e Diogo Esparteiro reinventam o tradicional com a modernidade, através das técnicas eletrónicas que têm à disposição.
O que era cantado há décadas e tocado pelas violas há mais de cinco séculos, é agora “repescado” pelos dois músicos que imprimem a sua sonoridade com o que estava quase extinto na música portuguesa.
“Fazemos música de inspiração tradicional, vamos buscar as referências de melodias, acordes, mas fazemos composições originais. Nós temos pequenos trechos de músicas tradicionais, porque usamos recolhas feitas por etnomusicólogos nos anos 60 e 70 como o Michel Giacometti e o Ernesto de Oliveira, ‘samplamos’ aquilo e processamos a nossa maneira, mas preservando a carga estética e emocional que as gravações têm”, explica Rui.
O que parecia foleiro é agora moderno, com várias tentativas de recuperar o que é tradicional em novas músicas portuguesas. Diogo explica que a queda do Estado Novo teve um “dedo” na anulação de tudo o que se relacionasse com identidade nacional.
"Tinhas na altura do Estado Novo um apoio para a música tradicional e folclore. No 25 de Abril, tudo o que era apoiado pelo Estado Novo foi negado, pertencer ao rancho ou fado começou a ser mal visto, como apoiante do regime”, contextualiza.
Por isso, o que parece ser uma mancha negra de esquecimento, ressurge, agora, com as feridas mais saradas e gerações “da liberdade” a quererem recuperar o tradicional - com um twist.
“Nós tratamos a tradição com respeito, com os seus elementos, ritmos, instrumentos e linhas melódicas, mas damos argumentos que ela não tem com a parte eletrónica, os sintetizadores, os beats, distorções, reverbs”, acrescenta o Rui.
O disco contém, então, “um passado e uma tradição renovados, processados e amplificados”, com “violas tradicionais quase extintas, camadas de adufes e bombos, beats pesados e sintetizadores que fazem vibrar paredes”, porque o objetivo dos Bicho Carpinteiro é que a sua música resulte numa discoteca.
Para os dois músicos, o álbum faz parte de uma tradição aumentada, dado que acrescentam ao que “vem de trás” algo construído que faz parte do presente.
Assim, “a tradição não é estática” e vai-se reinventando.
A geração do rock n’roll norte-americano e britânico, que achava foleiro tudo o que era português e escrito na língua portuguesa, foi agora substituída pela geração que quer ver recuperado os sons do país, de todas as regiões, mas modificados.
Para Rui, “o melhor que Portugal tem para exportar é a sua música de raiz, porque o rock já há mil bandas que o fazem melhor que nós, também o pop”.
O Diogo acrescenta que o melhor exemplo disso é a América Latina, que nunca se esqueceu das suas tradições e as comemora todos os dias, sem achar foleiro e exportando para lá do Atlântico e Pacifico.
O Fadão, o Fado Beirão e as Violas Temperadas
O álbum de estreia da banda é uma ode a várias regiões do país, quase como um canto evocativo para cada povo que se reconhece numa certa sonoridade própria.
Apesar das linhas que delimitam o nome de terras, os Bicho Carpinteiro conseguem agregar várias portugalidades num espaço de três minutos.
O Fadão, uma das 10 músicas do álbum, é inspirada no Fado Corrido, por sua vez inspirado no Corrido, uma dança tradicional algarvia.
E não fica por aqui, tendo em conta que existe outra peça de influência.
"Eu toquei gaita de foles quando tinha 20 anos e foi a maneira que me introduzi à música tradicional e tocávamos fado batido. Sempre tive essa música na cabeça e quando compus inspirei-me aí", diz Rui.
O próprio fado esteve, em tempos, muito colado ao regime salazarista, e foi um dos ganha-pão de Amália Rodrigues. Sendo algo que nunca se perdeu, e estando sempre em recuperação, os Bicho Carpinteiro conseguem subverter ainda mais o género musical e chamar ao pé a batida que precisa.
Já a Fado Beirão foi composta entre Castelo Branco e Lisboa, na viola beiroa. Não sendo propriamente um fado, é chamando à memória sonora a harmonia e acordes de um fado.
Viajando da Beira e do Litoral para o Norte, os Bicho têm um tema chamado "Chula", uma dança e género musical tradicional do Minho com "várias camadas de adufos e ritmos de Castelo Branco". Para a banda, é importante, enquanto se ouve o álbum, ir-se "bebendo um bocadinho a todo o país".
Para os próprios, mesmo vivendo em Lisboa, têm raízes em várias terras, como muitos outros que acabam por atracar na capital.
"Há uma grande mescla no nosso país e tradição sempre foi música que passou de boca a boca, em que as pessoas aprendiam umas com as outras, ou ouviam nas romarias e davam sempre o seu cunho pessoal", explica Rui.
Este é o caso da canção Violas Temperadas que exemplifica bem a noção de que a tradição não é estática e está sempre a evoluir.
"Nesse processo de aprendizagem, as pessoas acrescentavam coisas com a sua experiência, capacidade técnica, e passavam esta mensagem a outros tocadores e tudo isto é que é fazer tradição", diz Rui.
Nas Violas Temperadas existe influência mais africana e, para a banda, "representa tudo o que se passa mais em Lisboa", onde se recebe cada vez mais influências de muitos sítios e lugares, onde todas as novas culturas estão a apropriar-se, mas de uma forma positiva da cidade e a criar uma nova tradição.
Para os Bicho Carpinteiro, quem canta uma música acrescenta uma nota.
E, neste caso, as notas valem por si nas violas típicas.
"Achamos que os instrumentos são capazes de fazer coisas que os outros também fazem, são versáteis, dá para tocar pop com eles, é uma questão de abordagem", diz o Rui.
A viola beiroa do Rui vem das suas origens em Castelo Branco. Já o Diogo, que não compôs o álbum, teve um mês para escolher um cordofone.
"A viola toeira, gostei do som e afinação porque é mais próxima da guitarra clássica do que a beiroa ou a braguesa, mas achei esteticamente interessante também"; explica.
Os cordofones, dizem os etnomusicólogos, vêm todos historicamente de um instrumento de corte: a vihuela. Depois, cada região acabou por assumir a forma de construir e de tocar.
"Há cerca de 10 anos estavam quase extintos, ninguém os tocava", acrescenta Rui.
Elevar o estado de espírito
Agora, com o primeiro álbum cá fora, com o apoio da Fundação GDA e do Fundo Cultural da SPA, os Bicho Carpinteiro estão a trabalhar no espetáculo ao vivo para apresentar os temas Bruma, Aioioai, Beco das Flores, Vento da Arada, Larai Larai, Alto Lá… Como explica Diogo, o disco e concerto são experiências diferentes e as músicas têm de ser adaptadas.
"Vamos ter projeção de vídeo, espetáculo de luz a acompanhar e uma abordagem musical que consideramos mais apropriada naquele momento, o concerto é o momento e o disco é outra plataforma", diz.
Para além de reinventar a tradição, reinventam a própria música nos espetáculos. E como peregrinam no álbum, migram agora também, em romaria, para as diferentes regiões no país já com espetáculos marcados.
- 6 de janeiro, na Casa de Cultura em Setúbal
- 13 de janeiro, na Sociedade Harmonia Eborense em Évora
- 19 de janeiro, nos Maus Hábitos do Porto
- 20 de janeiro, no Mavy em Braga
Para quem queira ver a música tradicional a ter valor só por si, e esteja aberto a uma proposta de identidade regional, não quererá perder os Bicho a coçar a tradição e a expandi-la na modernidade.