Estima-se que um terço da população francesa tenha origem estrangeira. A imigração é um capítulo de peso na História de França, assim como a discriminação que, desde cedo, acompanhou - e dificultou - o processo de inclusão das comunidades de imigrantes em França. Estas continuam a travar, ainda hoje, uma longa e dura batalha contra o discurso de intolerância, o grande motor do partido de extrema-direita francês, Rassemblement National (antiga Frente Nacional).
O país europeu das oportunidades… só para alguns
Depois das duas Grandes Guerras as maiores potências europeias veem-se desfeitas. O processo de reconstrução de França só foi possível com a ajuda de milhares de imigrantes europeus e do império colonial francês. “A partir do século XIX os franceses deixaram de fazer tantos filhos e isso tornou-se numa preocupação porque, durante a Guerra, precisou-se de soldados”, contextualizou Victor Pereira, historiador e professor na Universidade de Pau et des Pays de l’Adour. Depois do primeiro conflito mundial, mobilizaram-se cerca de 600 mil trabalhadores estrangeiros prontos a reerguer demográfica e economicamente França. 22 mil eram portugueses. A França tornou-se no século XX um dos destinos de eleição dos imigrantes portugueses.
A comunidade portuguesa é hoje tida como uma referência - os “bons imigrantes” como Marine Le Pen, atual presidente da Rassemblement National, os apelida. “Os portugueses trabalhavam muito”, explicou Victor Pereira. “Como a maioria entrou de forma clandestina sentem que têm uma enorme dívida por pagar”. Os portugueses são também muito “dóceis”, como o historiador os designa: “Participam e reivindicam pouco”.
Nas décadas de 60 e 70 o governo francês fechou os olhos à imigração portuguesa clandestina para impedir a entrada de mais argelinos. Para o historiador lusodescendente era o simples facto de serem europeus que tornava os portugueses imigrantes de eleição: “Ao entrarem mais portugueses não havia tanto espaço para os argelinos”, justificou.
Na mesma altura, a França registou uma quebra na chegada de outros imigrantes europeus, como italianos e espanhóis. “Os portugueses foram a última reserva de mão de obra europeia, católica e branca. Caso a França não facilitasse a entrada, o destino dos portugueses seria outro”, fundamentou Victor Pereira.
A preferência pelos portugueses é, na perspetiva do docente, um “discurso notoriamente discriminatório". Mas não é um discurso novo. “Esta forma de escolher os imigrantes com base na sua etnia e religião é bastante antiga”, explicou. Os franceses sempre distinguiram os europeus dos não-europeus: “Os europeus eram vistos como pessoas mais civilizadas e, portanto, podiam ter acesso a trabalhos mais profissionais e intelectualmente mais difíceis, enquanto os não-europeus eram [vistos como] indivíduos pouco desenvolvidos e, por isso, tinham de ficar com os trabalhos mais pesados”, sublinhou.
A exceção argelina
A preferência pelos imigrantes portugueses é um fenómeno que o sociólogo português, Albano Cordeiro, chama de “para-raios” magrebino. "Havia a guerra da Argélia, a descolonização; a sociedade francesa entrou num contencioso com os magrebinos; a xenofobia e o racismo orientaram-se para aí. Usavam os portugueses para se desculpabilizar: ‘eu não gosto de magrebinos, mas não tenho nada contra os portugueses’", explicou Albano Cordeiro ao jornal Público. Assim, “os supostamente ‘bem integrados’ portugueses são usados como arma de arremesso para criticar os imigrantes e filhos de imigrantes provenientes de África”, escreveu também Victor Pereira num artigo de opinião no Público.
Mas não foi preciso chegarem os portugueses para que os argelinos sentissem a discriminação na pele. Desde a descoberta francesa da Argélia que existe uma tensa e difícil relação entre os dois territórios. Aprisionados desde 1830, os argelinos sentiram os horrores do colonialismo francês.
“Durante o século XX houve um arsenal de desculpas para expulsar a comunidade argelina de França”, explicou Victor Pereira. Isto levou a historiadora francesa, Geneviève Massard-Guilbaud, a investigar o real comportamento dos imigrantes argelinos em Lyon, em 1920. Depois de uma minuciosa análise documental, a historiadora concluiu que, apesar da perceção e das autoridades francesas, os argelinos não eram indivíduos problemáticos ou desordeiros. “Já desde essa altura que os argelinos são vistos como um problema em França”, corroborou Victor Pereira.
“A França é como uma mobylette”
Segundo Jean-Marie Le Pen, fundador da Frente Nacional, a comunidade portuguesa era claramente diferente, chegando a afirmar que nada tinham a temer com as políticas anti-imigração da filha Marine. “Os portugueses são europeus e, ainda por cima, a comunidade portuguesa nunca colocou nenhum problema à França, pelo contrário”, afirmou à agência Lusa em 2017. Para Marie-Christine Volovitch-Tavares, historiadora francesa, “é verdade que muitos portugueses, de certa forma, tiveram oportunidade de se comportar de maneira a tornar a sua aceitação mais fácil na sociedade francesa. [...] Houve uma certa hipocrisia das autoridades francesas que queriam mais trabalhadores portugueses, mas não fizeram nada para os acolher bem”, afirmou ao Diário de Notícias.
Victor Pereira relembra que os portugueses, apesar de serem considerados bons anfitriões, originalmente não foram bem recebidos. Com a crise económica de 1931 a França viu-se obrigada a expulsar imigrantes portugueses depois de acolher 75 mil no ano anterior. A escolha da comunidade portuguesa prendeu-se “por terem sido os últimos a chegar, muitos não saberem escrever ou falar francês e por terem poucos contactos”, como esclareceu o historiador. Além disso, também os portugueses foram alvo de preconceitos. “Chegámos a ver discursos racistas que afirmavam que os portugueses cheiravam mal, conduziam mal e que se podiam portar mal com as mulheres”, acrescentou.
De facto, as semelhanças entre as comunidades imigradas em França são gritantes. Em 2018, numa carta aberta publicada no jornal francês Le Monde, dezenas de académicos franceses lusodescendentes repudiaram a exemplificação dos portugueses enquanto bons imigrantes. “Se houver um bom aluno, certamente haverá um mau aluno. E aquele para quem apontamos o dedo é, neste caso, aquele que não é ‘branco’ e/ ou ‘cristão’”, defenderam. “Estas manipulações procuram apenas reforçar o racismo que hoje atinge certas populações estigmatizadas, desde a figura do ‘muçulmano’ à dos ‘ciganos’”, continuam. Para estes investigadores as imigrações árabes e portuguesas “sempre estiveram ligadas, como duas faces da mesma moeda, unidas pelo mesmo desprezo expresso por parte da sociedade de acolhimento”.
A luta pela igualdade racial marcou os anos 80. O surgimento e crescimento da Frente Nacional só veio intensificar o paradigma discriminatório já existente em França.
Em dezembro de 1984, os imigrantes de variadas nacionalidades subiram nas suas mobylettes e conduziram pelas ruas de Paris em nome de uma França mais plural. Os portugueses foram das comunidades com maior peso na mobilização mais tarde intitulada de Convergence 84.
A mobylette é uma “vespa dos pobres”, como descreveu Victor Pereira. Uma mota mais pequena que consumia uma mistura de 96% de gasolina e 4% de óleo. Assim como a mobylette, a França só avança com a combinação das diversas nacionalidades residentes.
A mobylette tornou-se o símbolo da manifestação de 1984 e a esperança da verdadeira integração cultural em França. “O slogan ainda é relevante hoje”, enfatizaram os académicos lusodescendentes na coluna do Le Monde.
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É um projeto patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian que terá uma expressão multimédia e que incluirá um conjunto de grandes reportagens que a SIC emitirá em fevereiro de 2021. O projeto resulta de uma parceria estabelecida entre a SIC e a NOVA FCSH e pretende mergulhar no difícil tópico do “populismo radical que alimenta a direita nacionalista e antissistema europeia” - título que esconderá derivas em direção aos extremos; em direção ao quadro que molda a extrema direita.