O que dificulta o acesso aos meios de diagnóstico e atrasa as decisões terapêuticos na área do cancro são sobretudo problemas de organização dos serviços e não tanto a falta de recursos técnicos e humanos. Esta é uma das conclusões do debate que reuniu a equipa de curadores do projeto “Tenho Cancro. E Depois?” e que contou com a presença do secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Francisco Ramos: “Em Portugal não existe um problema de acesso à tecnologia, nem aos medicamentos, existe sim, um problema de organização.”
Na lista de prioridades, o secretário de Estado inclui um maior investimento na formação profissional, para que os especialistas possam “decidir melhor e de maneira mais fundamentada, em função dos doentes e não da tecnologia”. E sublinha que a questão da transparência nas decisões deve ser o pilar fundamental da próxima legislatura: “É preciso ser transparente a todos os níveis, nas características da inovação, na informação dos preços dos medicamentos, uma vez que são muito altos, e na informação que é dada às associações de doentes e ao grande público.”
Para os especialistas presentes no debate, acabar com as desigualdades no acesso à saúde deve ser a principal prioridade da próxima legislatura. Para que, como sublinha Isabel Galriça Neto, médica no Hospital da Luz e deputada do CDS/PP, “os 30 mil portugueses que morrem de cancro em Portugal não sejam considerados portugueses de segunda”.
Acesso à inovação
Uma das formas de organizar e melhorar serviços seria, segundo Fátima Cardoso, diretora da Unidade de Mama do Centro Clínico da Fundação Champalimaud, criar “mais e melhores centros de referência, em que as equipas multidisciplinares possam atuar de forma mais eficaz e mais sustentável, pois nem todos os oncologistas estão preparados para operar um melanoma ou um cancro da mama.”
Como sublinha Luís Costa, diretor do Serviço de Oncologia do Hospital Santa Maria, e presidente da ASPIC (Associação Portuguesa de Investigação em Cancro) “não se faz oncologia sem multidisciplinaridade.” A prioridade “deve ser a de saber como devemos acolher a inovação e investigação de forma sustentável e padronizada” para que todos os doentes possam ter acesso à inovação, situação que — sublinha —“neste momento não acontece em Portugal”. Luís Costa defende também um maior investimento na planificação de recursos humanos, para que haja profissionais suficientes nas várias áreas, nomeadamente no registo oncológico, um meio fundamental de integração e de partilha de dados entre diferentes serviços.
Programa de rastreios
A necessidade de uniformizar os rastreios em território nacional é outra das preocupações. Como lembra José Dinis, diretor do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas, se os cancros forem detetados a tempo, ganha-se no domínio saúde e poupam-se recursos financeiros. “Não basta implementarmos os rastreios. Temos de fazer uma campanha a nível nacional para convencer a população a aderir.” Vítor Neves, presidente da Europacolon Portugal, alerta para a situação dramática de morrer uma pessoa por hora de cancro digestivo e para o facto de os resultados dos rastreios espelharem uma realidade que exige outro tipo de medidas: “Quando, através do rastreio, só diagnosticamos 24 pessoas das 9 mil pessoas que têm cancro digestivo, alguma coisa está errada.”
Colaboração entre instituições
O debate contou com membros dos três institutos portugueses de Oncologia: João Oliveira, presidente do IPO de Lisboa, Margarida Ornelas, presidente do IPO de Coimbra, e a enfermeira-diretora Fernanda Soares, em representação do IPO do Porto. Para João Oliveira, os problemas do SNS advêm, em grande parte, da “falta de sinergia de recursos e integração dos mesmos.” Os três concordam que deve haver mais sinergia entre as três instituições. “Estamos a trabalhar numa plataforma para que os institutos consigam definir estratégias em conjunto e melhorar a realidade do cancro no país”, revela Fernanda Soares. Paulo Cortes, presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia, resume em duas palavras as ações que devem marcar os quatro anos da legislatura: organizar e colaborar. “Todas as organizações têm de estar envolvidas e devem ter uma palavra a dizer para melhorar a qualidade e sobrevivência dos doentes.”
Literacia e direitos dos doentes
A literacia para a saúde é outra questão apontada como prioritária e indispensável para os próximos anos. “A falta de literacia faz com que, muitas vezes, o diagnóstico seja tardio”, afirma Teresa Bartolomeu, diretora de marketing da Médis, que acrescenta que seria muito importante incluir as práticas de comportamentos saudáveis nas escolas e nos programas curriculares, o mais cedo possível. Os direitos e os deveres dos doentes, o aumento de sobreviventes (os que vivem com a doença e os que já não têm doença ativa) são também questões que requerem mudanças legislativas. Como refere o presidente da Liga Portuguesa Contra o Cancro, Vítor Rodrigues, “os sobreviventes não têm acesso a seguros, créditos e, muitas vezes, não conseguem ter a mesma produtividade no trabalho, mas podem na mesma ser úteis na sociedade”. Na prática, como defende Rosário André, diretora médica da Novartis, para preparar o futuro será necessário rever agora o quadro legislativo que define os direitos e deveres dos doentes oncológicos, pois o que temos foi pensado há 10 anos e está “desajustado da realidade”.
Cancro hereditário
Outra questão trazida a debate foi a incidência dos casos do cancro hereditário e as suas implicações na saúde da população e na economia. Como recorda Tamara Milagre, presidente da associação Evita, dos doentes oncológicos, 10% têm cancro hereditário, mas apenas 20% a 30% dos portadores sabem da sua condição. “Estamos em falta na identificação dos portadores.” O cancro nessas pessoas manifesta-se muito cedo e a “maioria nem chega a fazer rastreios”. A Evita está a fazer um inquérito, disponível no site da associação, a todas as pessoas que preencham os requisitos.
ASSISTENTE VIRTUAL DE APOIO AO CANCRO
A AVA (Assistente Virtual de Apoio ao Cancro) é um chatbot, único no país, que pretende facilitar o acesso a informação segura e credível sobre o cancro. Desenvolvido pela Djomba, estará no Messenger do Facebook, no site “Tenho Cancro. E depois?” e em outros sites de relevância na área. A AVA não se substitui ao médico, ou seja, não responde clinicamente a nenhuma pergunta: ouve as questões que lhe são colocadas pelo utilizador, tenta aprender e responde com conteúdos provenientes de plataformas com informação segura. O chatbot vai ser testado durante as próximas semanas antes de ser implementado.
Textos originalmente publicados no Expresso de 21 de setembro