Grande Reportagem SIC

"Dantes, não tinha amigos. Agora tenho": quando o surf é tábua de salvação

Na praia do Tofo, na província moçambicana de Inhambane, um projeto social de surf está a mudar a vida das crianças carenciadas da comunidade. Rapazes e raparigas que vivem em frente ao mar e não sabiam nadar. Que gastavam a infância nas tarefas domésticas e não brincavam.

Aulas de surf no Clube de Surf do Tofo
SIC

Susana André

Em quatro anos, o Clube de Surf do Tofo, organização sem fins lucrativos, ajudou estas crianças e jovens a conquistarem confiança e autoestima. Deu-lhes objetivos e projetos de vida. Sentou-as nos bancos da escola. Ensinou-as a brincar. Tábuas de salvação é uma Grande reportagem SIC para ver no Jornal da Noite de quinta-feira.

“Estou sempre a pensar no surf. Sinto-me tão feliz dentro de água”

São quatro da manhã e Ivone já lança o balde ao poço. Lava a cara e os dentes, varre o chão, prepara o pequeno-almoço para a família, lava a louça, toma banho, veste a farda e vai para a escola. Tem pela frente uma marcha a pé de mais de uma hora. Outro tanto no regresso a casa.

“Os meus pés doem-me por andar tanto, custa um bocadinho, mas não tenho como pagar o transporte”.

O autocarro custa 15 meticais para cada lado, cerca de 22 cêntimos. Pelo caminho, Ivone leva um pensamento único. "Estou sempre a pensar no surf. Sinto-me tão feliz dentro de água".

Ivone começou a surfar há três anos, pouco depois do Clube de Surf do Tofo abrir portas à comunidade. Como a maioria das crianças e jovens desta localidade banhada pelo mar, Ivone não sabia nadar e o pai tinha medo que se afogasse nas aulas de surf. Começou por proibir, mas hoje tem orgulho nas conquistas da filha.

Na primeira edição do Tofo Surf Series, em 2021, Ivone subiu ao pódio. Ficou em 3º lugar na prova feminina de shortboard. "Fiquei tão feliz. Nem queria acreditar que tinha sido eu a fazer aquilo". A jovem de 15 anos conta que, antes do surf, não tinha objetivos de vida.

"Desde que comecei a surfar, ganhei força e confiança. Acredito que um dia vou viajar para competir noutros países, como a minha professora Júlia. Ela inspira-me muito. E eu gostaria de lhe agradecer por me ter ensinado tudo o que eu sei".

Júlia começou a fugir de casa para surfar

Júlia Jiji é a primeira surfista moçambicana. Vendia cocos na praia do Tofo quando um professor de surf sul-africano a desafiou a entrar no mar para aprender a nadar e a surfar.

"A primeira vez que subi na prancha senti algo muito forte e soube que era aquilo que eu queria fazer na vida".

Júlia começou a fugir de casa para surfar. Órfã desde os 8 anos, foi adotada por uma vizinha, a quem chama mãe. “Tive uma infância muito triste. Eu e a minha irmã fomos separadas e eu não tinha com quem partilhar o que estava a sentir.”

O surf trouxe-lhe uma alegria que não conhecia; empenho, perspetivas. Luísa, a mãe adotiva, conta que Júlia estava sempre dentro de água. "Eu precisava dela para as tarefas domésticas: lavar, cozinhar, ir à machamba, mas ela só queria surfar".

Há três anos, Júlia começou a dar aulas no Clube de surf do Tofo. Já subiu ao pódio em diversos campeonatos e é patrocinada por uma marca internacional. Aos 22 anos, Júlia conquistou autonomia financeira e traçou um caminho novo para as raparigas da comunidade. "Hoje em dia estou com as minhas alunas dentro de água e isso é algo que eu nunca pensei ver acontecer. Fico muito feliz com as oportunidades que o surf está a dar às meninas."

A rapazes e raparigas, Júlia Jiji fala dos perigos do casamento precoce, da igualdade de género, de direitos e deveres. E acredita que o surf está a mudar mentalidades.

A mãe lamenta que o projeto do Surf Clube não tenha aparecido mais cedo, e brinca: "se eu fosse mais nova, e mais magra, com certeza que subia na prancha, não tenham dúvidas." Luísa fala com vaidade sobre o que a filha conquistou: "é a primeira surfista do país e um exemplo. Está a mostrar que as mulheres podem fazer tudo o que os homens fazem."

“Dantes, eu não tinha amigos. Agora tenho.”

Cássimo Ernesto nasceu com uma deficiência na perna esquerda que duas cirurgias não resolveram. "Há muitas coisas que eu não posso fazer. Não posso jogar à bola, fico só a ver. De bicicleta andava, mas caí e fiquei com medo". Cássimo não sabe explicar porquê, mas nunca teve receio de subir para a prancha. É um dos mais empenhados praticantes de surf do clube do Tofo.

"Dantes, eu não tinha amigos. Agora tenho. Dantes eu não fazia nada. Acordava, conversava com a mamã, vinha até à praia. Mais nada. Agora, faço surf e ensino as outras crianças. Olham-me de outra maneira. Até se esquecem que eu sou um menino deficiente".

De quinta a domingo, Cássimo faz pão na padaria de um vizinho, o Sr. Manuel. Começa à meia-noite, acaba às 6:00. Nos dias úteis segue diretamente para a escola. A mãe explica que o filho, de 13 anos, tem de trabalhar para ajudar a família. Sara tem uma pequena banca de roupa em segunda mão e passa dias inteiros sem vender nada. "A escola é longe e o Cássimo não pode ir a pé", explica. “Tenho de lhe dar 10 meticais (15 cêntimos) para o transporte, para ir e voltar, e nem sempre consigo esse dinheiro.”

Há três anos, quando o filho lhe pediu para aprender a surfar, Sara disse que não.

"Tinha medo que ele fosse para o alto mar, que apanhasse tubarões, sei lá. Eu não quero perder ele nem por um segundo, é o meu anjo."

A insistência de um dos professores do Clube de Surf, levou Sara a ceder e hoje agradece ao surf porque diz que nunca antes tinha visto o filho feliz.

Cássimo será um dos participantes da segunda edição do Tofo Surf Series que se aproxima. Há meses que as crianças do Clube de surf se preparam para a competição. Vêm surfistas de todo o país e todos querem mostrar talento naquilo que mais gostam de fazer.

Cássimo garante que "perder ou ganhar não importa, o que importa é que se divirtam", mas o olhar diz outra coisa e, mais à frente, as palavras também "fico um bocadinho triste se perder porque gostava de mostrar à minha mãe, aos meus amigos e aos meus professores que valeu a pena acreditarem em mim."

O encontro com o Papa Francisco

O Clube de Surf do Tofo é uma instituição sem fins lucrativos criada em 2018. É parceira da organização Scholas Ocurrentes, fundada pelo Papa Francisco. No dia da inauguração, em Maio de 2018, as crianças participaram numa videoconferência com o Papa.

Mais tarde, um grupo de surfistas do Clube de Surf deslocou-se a Maputo para se encontrar com Francisco, durante uma visita do Papa a Moçambique. O projeto original foi fundado em 1998, em Durban, na África do Sul, pelo surfista e ativista inglês Tom Hewitt.


Tábuas de salvação é um trabalho de Susana André, com imagem e drone de João Pedro Fontes, edição de imagem de Tiago Martins e grafismo de Isabel Cruz.

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