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Quanto valem os órgãos de um albino? O tráfico humano que mais dinheiro envolve

Aylan tinha 9 anos quando foi raptado e assassinado por vizinhos na comunidade isolada onde vivia - em Molumbo, na província moçambicana da Zambézia. Morto, como centenas de albinos, para lhe extraírem os órgãos que muitos acreditam trazer riqueza e poder. “Crimes em Claro” é uma Grande Reportagem SIC.

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Susana André

Há dois anos que Angelina perdeu o filho. "Estou sempre a pensar nele. A chorar por ele".

Nas províncias do Norte e do Centro deste extenso território - quase dez vezes maior que Portugal - os albinos são alvos particularmente vulneráveis.

A milhares de quilómetros da capital, o número dos que não sabem ler nem escrever dispara. A Zambézia é a província com a maior taxa de analfabetismo do país: 53,9% contra 12% em Maputo, a capital. Alimentadas pelos curandeiros, as superstições e as crenças dão-se bem por aqui.

(A versão integral desta reportagem pode ser vista em Opto.sic.pt)

Para alcançar o lugar onde o filho de Angelina foi morto, é preciso andar durante quilómetros sem descanso. O solo é hostil. O sol é inclemente e está a pique. Angelina, a mãe e a irmã não têm um metical para comprar água - nem há num raio de muitos quilómetros, quem a venda.

Quando por fim alcançamos o local onde Aylan vivia com a mãe e a irmã, encontramos os destroços de um cubículo de palha e lama, deitado abaixo pela última estação das chuvas.

“Pegaram no meu filho e levaram-no”

Angelina conta que os três homens lhes entraram em casa por volta da meia-noite, quando todos dormiam. "Pegaram no meu filho e levaram-no". A mãe, a irmã e o cunhado viviam perto e ouviram os gritos. Desconfiaram de um vizinho e chamaram o líder comunitário para os acompanhar. "Fomos procurar o meu filho a casa de um homem chamado Lucas e encontrámos sangue. Ele acabou por confessar e denunciou outros dois homens. Foram todos presos e condenados."

Angelina não pode sequer dar um enterro digno ao filho. Para a feitiçaria, as ossadas dos albinos também valem dinheiro e as profanações de sepulturas são recorrentes.

"Não enterrámos os restos mortais do meu filho no cemitério porque tínhamos medo que os desenterrassem. Tivemos de os pôr num local secreto."

Quanto valem os órgãos de um albino?

Há quem pague até 75 mil euros pelos órgãos de um albino. Mais, se for uma criança. Um albino vivo pode valer mais de 300 mil euros, é o tráfico humano que mais dinheiro envolve em todo o mundo.

A Tanzânia, país onde nascem mais albinos - um em cada mil habitantes - é particularmente atrativa para as redes criminosas da África Oriental e Austral.

A dimensão do problema é tal que há oito anos o governo do país proibiu a feitiçaria e ameaçou prender os curandeiros. Mas as redes de tráfico mantêm-se firmes na Tanzânia e noutros 6 países: Moçambique, Malawi, Burundi, Quênia, Suazilândia e África do Sul. Envolvem curandeiros, sequestradores, traficantes e homicidas.

Os clientes são políticos e homens de negócios africanos, sobretudo sul-africanos, em busca de mais poder ou riqueza. Muitos acreditam que para garantir prosperidade no além, têm de ser enterrados com 4 albinos vivos. Os órgãos são ainda usados pelos curandeiros como tratamento para a impotência sexual, a infertilidade, e doenças como o VHI.

Em Moçambique, como nos outros países onde se movem as redes criminosas, não é raro que sejam os próprios pais a vender os filhos albinos. O envolvimento de familiares ou pessoas próximas das vítimas é recorrente.

“Eu consegui dar-lhe com um pau na cabeça”

Esmeralda tinha 22 anos quando foi assassinada, com a conivência de um tio. Entraram-lhe em casa durante a noite, mataram-na e levaram os órgãos. O irmão, Juninho, vivia ao lado, num pequeno compartimento, igualmente feito de palha e lama. Nunca conheceram o pai e a mãe morrera um ano antes. Juninho também é albino. Dias depois do homicídio da irmã, mudou-se para junto dos avós, que, entretanto, também faleceram.

Numa zona igualmente isolada, o jovem albino habita uma pequena casa sem condições de segurança onde já sofreu uma tentativa de rapto.

"Vieram por volta da meia-noite, eram vários homens. Um deles aproximou-se da janela e arrancou-a. Eu consegui dar-lhe com um pau na cabeça, ele começou a sangrar e os outros pegaram nele e fugiram."

Na fuga, um dos homens deixou cair o telemóvel. Juninho entregou-o às autoridades, mas acusa o chefe da polícia local de corrupção. "Eles nunca usaram o telefone para investigar. Quando eu o pedi de volta percebi que o tinham devolvido aos malfeitores a troco de dinheiro", conta o jovem albino, que acusa a polícia de corrupção.

Juninho passa as noites em claro, com receio de ser raptado. “Tenho muito medo. Mesmo que tenha vontade de ir à casa de banho, não vou, não tenho coragem de ir lá fora”. O medo também o acompanha a caminho da escola, num percurso diário de 1h30 a pé.

"Chego a estar muitos dias sem comer nada"

Juninho tenta há dez anos acabar o 12º ano. Mas, como a maior parte dos albinos, tem graves problemas de visão. O quadro é uma imensa nebulosa. Juninho não tem dinheiro para comprar protetor solar, nem sequer uma camisola de manga comprida que lhe proteja os braços. Por medo dos sequestros, mas também para evitar o sol que lhe fere a pele, não pode sequer sair para fazer agricultura de subsistência.

Para sobreviver, depende da caridade das vizinhas. “Elas ajudam-me, dão-me folhas de abóbora e mandioca, quando têm, mas também vivem com dificuldades”, lamenta. "Há alturas em que chego a estar muitos dias sem comer nada".

Os albinos sofrem de uma doença hereditária que afeta a produção de melanina - a proteína que dá cor à pele, cabelo e olhos. Deveriam usar diariamente litro e meio de protetor solar, o que implicaria gastar cerca de 2 mil meticais, 30 euros por dia, 450 euros por mês. Quase sete vezes mais que o salário mínimo, que em Moçambique ronda os 68 euros.


“Não existem protetores nas farmácias do estado, só nas privadas, mas a um preço incomportável”, explica Cristiano Cumbani, delegado provincial da Albimoz, uma das duas associações moçambicanas destinadas a apoiar pessoas com albinismo.

“As pessoas nos meios rurais não têm sequer noção da existência desses protetores, cremes que deviam usar todos os dias para evitar cancro de pele”. Cumbani refere que em 2015 foi aprovado um plano governamental para a inclusão e proteção das pessoas com albinismo, mas o delegado da Albimoz na Zambézia lamenta que o projeto nunca tenha saído do papel.

Em 2008, os albinos foram considerados pelas Nações Unidas como sendo "portadores de deficiência". E deste grupo, alerta a organização, são os que mais discriminações sofrem.

"Os meus colegas cuspiam-me e chamavam-me nomes”

Os números são incertos, e o último censo é de 2017, mas Moçambique, país de 32 milhões de pessoas, deverá ter entre 20 e 30 mil albinos. 17% são crianças. Mais de metade não vai à escola. À ameaça dos raptos soma-se o bullying. Por parte dos colegas, mas também dos professores.

"Um dos motivos que me levou a abandonar foi o bullying. Os meus colegas cuspiam-me e chamavam-me nomes. Mas não eram só eles. Os professores também faziam bullying comigo. Como eu tinha problemas de visão, diziam: se não vês bem, abandona, vai para casa".

Shelton, aluno de boas notas, suportou o mais que pode. Aos 13 anos, desistiu. "Já não dava mais para aguentar". O jovem albino esteve três anos sem aprender. Fechado no quarto, só saía através da música. Mas as palavras não chegavam ao papel por falta de caneta. A falta de dinheiro e de trabalho obrigam os pais a passar semanas fora de casa, numa província vizinha.

A maior parte do tempo, Shelton vive com a irmã e o sobrinho de um ano. O jovem de 16 anos regressou às aulas em setembro passado resignado a enfrentar o mesmo desprezo e as mesmas humilhações. Diz que só não aprendeu ainda a lidar com a ameaça que o acompanha diariamente no trajeto para escola. Aos 12 anos foi sequestrado. Um dos raptores era amigo da família.

O número de detenções por crimes contra albinos é reduzido. O tráfico envolve cidadãos nacionais e estrangeiros, numa cadeia complexa que torna difícil encontrar o "mandante". Sem meios e sem formação, a polícia moçambicana tem dificuldades na recolha de provas. No país, o sentimento geral é de impunidade. "Os nossos investigadores carecem de formação específica para lidar com esta causa, que é muito delicada", lamenta o delegado da Albimoz. "Acresce que temos muitos problemas de corrupção na própria polícia".

Por segurança, Angelina, a mãe e a irmã vivem agora numa pequena comunidade de mil pessoas, numa casa disponibilizada pelo líder comunitário. Horácio Martinho diz que ainda lhe custa acreditar que um membro da sua comunidade tenha sido capaz de cometer um crime tão bárbaro. "Foi uma tragédia, uma desgraça que se abateu sobre nós", desabafa.

Na pequena aldeia vive agora uma criança albina. Chegou recentemente com os pais de uma zona isolada de Molumbo. A criança não vai à escola e nunca foi vista a brincar na rua. Tem 9 anos, a idade de Aylan quando foi assassinado.

Ficha técnica:

Susana André - jornalista

João Pedro Fontes - repórter de imagem

Tiago Martins - edição de imagem

Isabel Cruz - grafismo

Diana Matias - produção editorial

Rui Branquinho - colorista

Edgar Keats - pós-produção áudio

Jorge Araújo - coordenação

Marta Brito dos Reis e Ricardo Costa - direção

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