Que Voz é Esta?

“Quando foi diagnosticada esquizofrenia à minha filha, procurei apoio desesperadamente. A certa altura, passei a viver em função dela”

Os familiares de pessoas com doença mental também adoecem. Têm muitas vezes de abdicar totalmente da sua vida para cuidar, sentem-se “desesperados” e, ao mesmo tempo, "culpados". Há falta de respostas e o apoio prometido pelo Governo ainda não se concretizou. “É uma pena que Portugal esteja a desperdiçar as verbas que solicitou para a reforma da saúde mental.” Oiça aqui o mais recente episódio do podcast "Que Voz é Esta?", com a participação de Fernanda Lobo e Joaquina Castelão, familiares de pessoas com doença mental

Que voz é esta?

Tanto Fernanda Lobo como Joaquina Castelão confrontaram-se com o mesmo problema quando, há vários anos, procuraram apoio especializado para a filha e a irmã, respetivamente, ambas com doença mental grave: a falta de respostas nos serviços de saúde. "Quando foi diagnosticada esquizofrenia à minha filha, comecei uma busca desesperada por apoio, mas não consegui encontrar nada. Não sabia o que fazer para que ela se sentisse melhor. Tentava sair de casa com ela e fazer atividades que antes lhe davam prazer, mas ela não se sentia bem em lado nenhum", conta Fernanda Lobo, 78 anos e residente em Lisboa.

A filha, que tem agora 52 anos, chegou a ser internada mais do que uma vez numa clínica privada, mas esses internamentos em nada alteraram o seu estado de saúde. "Não havia quaisquer melhorias. Ela voltava para casa sem perspetivas de reabilitação e muito medicada, quase em estado 'zombie'." Regressava sempre muito agitada, contente por estar em casa, mas, ao mesmo tempo, incapaz de ali permanecer. Fernanda Lobo chegou ao ponto de ter de fechar a porta de casa à chave e "esconder todos os garfos e facas", para evitar que a filha colocasse a vida em risco.

Também a irmã de Joaquina Castelão, a quem foi diagnosticada esquizofrenia aos 27 anos (tem atualmente 67), esteve internada várias vezes, mas com poucos resultados. “Sujeitavam-na àquilo a que se chamava 'cura do sono'. Ou seja, davam-lhe medicação para dormir, e ela dormia quase o tempo todo.” O tratamento era feito exclusivamente com psicofármacos, "não havia outras intervenções terapêuticas, como apoio psicológico, terapia ocupacional ou reabilitação".

Quando a irmã regressava a casa, após os internamentos (foram mais de dez em 20 anos), as alucinações e os delírios eram menos frequentes, mas ao fim de pouco tempo deixava de tomar os medicamentos prescritos, "que na altura tinham muito mais efeitos secundários do que têm hoje em dia", e voltava a ficar "pior". Tanto para Joaquina Castelão como para Fernanda Lobo foram anos de muito desgaste e exaustão. “A partir de certa altura, deixei de ter a minha vida. Eu vivia em função dela”, diz Fernanda Lobo.

"Acabamos por organizar a nossa vida em função das necessidades do familiar e, por vezes, deixamos de dar apoio e atenção a outros elementos do agregado, o que cria conflitos em nós próprios", concorda Joaquina Castelão. "Há muito desespero, sentimentos de culpa e uma sensação de grande impotência."


Enquanto presidente da FamiliarMente - Federação Portuguesa das Associações das Famílias de Pessoas com Experiência de Doença Mental, Joaquina Castelão garante que o seu caso e o de Fernanda Lobo não são únicos. “A falta de respostas é um problema que afeta muitos familiares de pessoas com doença mental, seja grave, seja ligeira ou moderada. A legislação existe, mas as medidas e programas previstos não são implementados.”

Aponta a falta de equipas comunitárias de saúde mental no terreno e lembra que as dez prometidas para este ano, financiadas pelo Plano de Recuperação e Resiliência [PRR], continuam por criar, a pouco mais de um mês de terminar o ano. Mas mesmo quando forem criadas, o número total destas equipas será "insuficiente" para as necessidades, diz. “A lei determina que deve existir uma equipa comunitária para a infância e adolescência por cada 100 a 200 mil habitantes, mas na realidade há apenas meia dúzia delas espalhadas pelo país.”

A falta de médicos de família nos centros de saúde dificulta o acesso aos cuidados especializados de psiquiatria e de saúde mental, sublinha Joaquina Castelão. Mais de metade das pessoas com perturbações psiquiátricas não têm acesso a cuidados de saúde mental. “Os serviços locais de saúde mental já estão organizados e têm equipas de proximidade no terreno que dão respostas multidisciplinares, mas há milhares de pessoas que, infelizmente, ainda não conseguem ter acesso a essas respostas.”

Tanto a filha de Fernanda Lobo como a irmã de Joaquina Castelão estão atualmente integradas em unidades de tratamento e reabilitação das Irmãs Hospitaleiras, mas a esmagadora maioria dos familiares de pessoas com doença mental não dispõe desse apoio, porque o número de vagas é limitado, diz Joaquina Castelão.

A responsável critica a fraca implementação da rede de cuidados continuados integrados em saúde mental. "Existem apenas 1300 lugares a nível nacional, e estão ocupados." Esses lugares distribuem-se por unidades que prestam diferentes níveis de apoio, das unidades sócio-ocupacionais às residências de apoio máximo. Mas estruturas como estas últimas, por exemplo, “só existem duas ou três, que não chegam a contemplar 100 pessoas”.

Está prevista, no âmbito do PRR, a criação de 500 lugares em residências na comunidade para desinstitucionalizar os doentes que residem em hospitais psiquiátricos, mas “os concursos para a abertura dessas vagas ainda não foram abertos”, avisa. “É uma pena que Portugal esteja a desperdiçar as verbas que solicitou para a reforma da saúde mental.”

Joaquina Castelão lembra que o Estado tem a obrigação - ao abrigo da legislação vigente em Portugal e de instrumentos como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pela Organização das Nações Unidas - de criar respostas para pessoas com doença mental. “O Estado tem de investir na saúde mental e todos nós devemos ter em mente que a família de um doente também acaba por adoecer.”

“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.



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