Que Voz é Esta?

“Qualquer um de nós pode ter comportamentos aditivos. Uma das causas é a repetição, ninguém fica com este problema por experimentar uma vez”

A adição é uma doença neuropsiquiátrica crónica que pode passar pela dependência de substâncias como o álcool ou a droga, mas que pode também traduzir-se em todo o tipo de comportamentos compulsivos, como o jogo ou as redes sociais. No novo episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, falamos das causas, dos sintomas e do tratamento desta perturbação complexa, com grande tendência a recaídas e causadora de enorme sofrimento. Oiça as explicações da psiquiatra Graça Vilar, do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), e o testemunho de Martinho Dias, que deixou a droga há sete anos depois de quase duas décadas de consumo

Que voz é esta?

Martinho Dias perdeu a conta ao número de anos em que foi escravo da droga. Por volta dos 20 injetou pela primeira vez heroína e cocaína e, em muito pouco tempo, as duas substâncias passaram a tomar conta dos seus dias. Aos 30 juntou-lhes metanfetaminas e tudo o que ainda restava da sua vida ruiu. Perdeu o controlo dos seus comportamentos, o fio do tempo e a noção da realidade. “Os consumos eram a minha prioridade para tudo". Nada mais existia ou importava.

Durante anos, fez várias tentativas de deixar as drogas. Esteve internado em quase uma dezena de comunidades terapêuticas, mas voltava sempre a recair. “Depois de ter estado 8 meses, um ano ou um ano e meio a viver numa comunidade, inserido num grupo de pessoas, de repente via-me outra vez em minha casa, sozinho de braços cruzados, sem ninguém, sem nada, inclusive sem vontade”, recorda. Voltar ao consumo era “um escape” para conseguir lidar com a angústia e a “depressão extrema” que nesses períodos o invadia.

Hoje tem 44 anos e há quase oito que não consome. Trabalha nas equipas de rua da associação de intervenção comunitária Crescer que dão apoio a toxicodependentes na zona da Grande Lisboa. Recuperou o controlo da sua vida, reencontrou o equilíbrio, reatou relações familiares e não pensa em voltar à droga. Mas hesita em dizer que está curado. Sabe que tem uma doença para a vida.

“Com a adição, a pessoa fica escrava. À semelhança do que acontece com outras doenças crónicas, em que há recaídas, com a adição nunca ninguém pode garantir que não volta a adoecer”, explica Graça Vilar, psiquiatra especializada em comportamentos aditivos e dependência, no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”.

A diretora do serviço de planeamento no Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) explica que se trata de uma doença neuropsiquiátrica crónica, que provoca alterações significativas em várias funções cerebrais e que tem grande tendência para recaídas. "Quando muitas vezes se diz que a pessoa tem falta de vontade e não tem força para acabar [com os consumos ou comportamentos aditivos], de facto acaba por não ter, exatamente porque a própria doença lha retirou”, diz.

De acordo com Graça Vilar, a doença atua da mesma maneira quer se trate da dependência de substâncias como o álcool e a droga, quer se trate de comportamentos aditivos como o jogo compulsivo, por exemplo.

“Todas as substâncias [psicoativas] e todos os comportamentos aditivos, como o jogo, atuam nas diferentes áreas do nosso cérebro, causando mudanças, nomeadamente na capacidade de gerir o presente e de perspetivar o futuro. Perde-se capacidade de controlo dos impulsos e de medir as consequências” dos atos, explica a responsável do SICAD, adiantando que são comuns mudanças extremas de comportamento e maior agressividade.

Em ambos os casos, a adição rapidamente provoca uma “escalada”, na medida em que, para alcançar o mesmo efeito, vai requerendo sempre doses maiores, substâncias mais potentes ou maior número de repetições do comportamento compulsivo.

“Repetição” é, aliás, uma palavra-chave no mecanismo da adição. “Uma das causas dos comportamentos aditivos, com ou sem uso de substâncias, é a repetição e a persistência. Ninguém fica com um problema por experimentar uma vez”, salienta a psiquiatra.

De resto, as causas são multifatoriais, havendo fatores ambientais, mas também genéticos na sua origem. Há pessoas com especial vulnerabilidade ou predisposição para desenvolver um problema de adição, que pode surgir como uma tentativa de “diminuir ou atenuar um mal estar emocional”, diz Graça Vilar.

"Não vales nada, és uma nódoa"

Sendo uma doença complexa, com dimensão fisiológica, psicológica e neuropsiquiátrica, o tratamento não pode assentar apenas na paragem dos consumos e na desintoxicação, até porque é frequente a substituição de uma adição por outra - por exemplo a passagem da droga para o álcool ou do álcool para o jogo compulsivo.

“O trabalho tem de ser muito profundo, não é só parar de usar. Há uma reeducação”, que passa por desaprender comportamentos enraizados ao longo de anos e construir um projeto de vida, diz Martinho Dias.

Antes de parar de vez os consumos, há quase oito anos, Martinho atingiu o “fundo do poço”. O consumo intensivo de drogas, nomeadamente de metanfetaminas, provocou-lhe uma psicose grave, que obrigou a quatro internamentos compulsivos no serviço de psiquiatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

“Eu via coisas que não eram reais e guiava a minha vida por aí. Por exemplo, falar com os pombos da cidade e mandá-los dar recados para Portugal inteiro. No jornal só lia a página esquerda, porque era aí que eu encontrava as diretrizes para viver o meu dia a dia. E lembro-me que saía de casa e entrava num café e começava a ouvir gritos de pessoas a dizerem-me que eu não valia nada, que era uma nódoa. E tinha mudanças extremas de comportamentos e sentimentos", recorda.

Os médicos alertaram Martinho e a família para o risco de a psicose se tornar irreversível. No último internamento compulsivo, percebeu que, se não parasse os consumos, poderia nunca mais acordar do pesadelo permanente em que vivia.

“O que fez me estar aqui hoje diferente foram mesmo esses episódios psicóticos que eu vivi e a recordação e lembrança que eu tenho de algumas coisas e dos períodos extremos de depressão" que se seguiam às alucinações, desabafa.

Depois de ter alta, ingressou numa comunidade terapêutica e continuou a ser seguido durante vários anos, nomeadamente com o apoio das reuniões de Narcóticos Anónimos. Não voltou a ser assaltado por delírios, acordou do pesadelo e voltou a sonhar.

“Os meus sonhos estão vivos hoje em dia e eu tento ir atrás daquilo que me faz feliz e que eu mais quero. Dantes nem sonhos tinha. Ou os sonhos que tinha eram muito negros”.

“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.



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