Muito mudou na Cova da Moura, em grande parte graças a uma mulher que ajudou a levar água e esgotos para o bairro, montou uma biblioteca para as crianças e ajudou a fundar o Moinho da Juventude, a associação que ainda hoje tem um papel determinante na vida de muitas pessoas que ali vivem.
Foi na casa de Lieve Meersschaert que aconteceu a primeira reunião do Moinho da Juventude, no dia 1 de novembro de 1984. Na altura, lutavam por um sistema de água e de esgotos. Só tinham duas torneiras para 900 pessoas.
Tudo se passava no sótão da casa de Lieve, que mora sozinha desde que o marido faleceu há dez anos. Na altura, o espaço serviu para reuniões do sindicato das empregadas domésticas e para a biblioteca improvisada. Agora é um lugar de apoio ao bairro, às crianças, jovens e idosos que procuram emprego, que querem estudar ou até quem precisa de ajuda para se legalizar em Portugal.
Lieve conta que o estúdio do Moinho foi construído pelas pessoas do bairro, pelas mãos de alguns jovens de 14 e 15 anos que eram utilizados para vender drogas. Nos anos 1980, conta, a casa da conhecida como "Mãe do Bairro", servia de espaço seguro e de criatividade. Ainda hoje Lieve guarda todos os desenhos das crianças da Cova da Moura, que foram os filhos que nunca teve.
Lieve chegou a Portugal com pouco mais de 30 anos, vinda da Bélgica, de carro, num mini. A ideia não era ficar.
"Pretendia ir ao Brasil, só que achei que o Brasil era um bocadinho longe e primeiro queria aprender o português. Então pensei, vou a Portugal. // E depois me apercebi que havia muitas coisas muito boas e, entretanto, tinha criado um grupo de amigos, também encontrei o Eduardo. Decidimos para ficar juntos, o Eduardo era dos Açores, então ficamos em conjunto aqui na Cova da Moura", contou à SIC.
O bairro já é casa há 42 anos.
"Vivo aqui com o gosto imenso deste bairro e gosto muito das pessoas, porque sinto que tem muita humanidade e valores que se foi perdendo. Aqui toda a gente conhece, toda a gente, e fala-se com as pessoas. Aqui, há problemas, não é? Mas há problemas por todo lado", disse.
Os problemas a que Lieve se refere são os que quase sempre trazem a Cova da Moura para os jornais: a criminalidade, a violência e o negócio da droga. Não nega que ele existe, mas diz que é aproveitado para criar preconceitos sobre um bairro onde é bom viver.
"São, sobretudo, migrantes. Então, utilizam isto para meter medo às pessoas, para meter o ódio e a violência. Eu tenho muito receio que as pessoas não abrem os olhos e não vejam o que está a acontecer", continuou.
Lieve refere-se ao discurso da extrema direita. A menos de um mês das autárquicas, lembra que o Moinho da Juventude já conseguiu muito pela Cova da Moura, mas que há ainda muito a fazer. Há ainda quem não tenha luz, água e esgotos, num bairro de origem ilegal que se começou a formar no final dos anos 1960 com a chegada de pessoas das antigas colónias.
Com 80 anos, Lieve dedica-se agora a ler tudo o que não conseguiu ler nos agitados anos de vida que teve. E escreve. Está afastada da direção do Moinho, porque quis passar o testemunho aos mais jovens, mas os jovens não a querem largar.
Vive sozinha, mas não se sente sozinha. A porta de casa está sempre aberta e há sempre quem queira entrar.