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"Não posso expressar o que sou": o desabafo de quem usa abaya, o vestido proibido em França

A decisão do Governo francês apanhou todos de surpresa e a polémica, que se gerou, promete continuar a dar que falar. “Não poderemos usar mais abaya na escola”, anunciou o ministro da Educação. E se fosse em Portugal? Foi essa a questão que colocámos a Aisha, uma jovem portuguesa que “não vê mal nenhum” na indumentária com que se sente confortável, apesar de ter de abdicar dela para, por exemplo, trabalhar.

Alex Liew/Getty Imagens

Ana Lemos

“A França é um país laico, onde há liberdade de expressão, liberdade religiosa. Ao fazerem isto estão a oprimir as mulheres muçulmanas porque é como nos sentimos confortáveis, é a nossa maneira de nos vestirmos e não vejo mal nenhum nisso”. A afirmação é de Aisha Akif, uma portuguesa trabalhadora/estudante, membro da direção da juventude da CIL (Comunidade Islâmica de Lisboa), que está “triste” com o que se está a impor nas escolas francesas.

Em entrevista à SIC Notícias, Aisha manifestou preocupação com “as irmãs muçulmanas em França”. A abaya, explicou, “é apenas um vestido comprido modesto” que é associado “à religião, mas tecnicamente não é um símbolo religioso, é simplesmente uma vestimenta coberta”.

“Não vejo porque é que as mulheres podem usar calças de ganga, tops, e eu que quero usar um vestido tapado e já há problema. Quero ir à escola aprender e não posso por estar a usar um vestido comprido ou um lenço na cabeça. É importante reconhecermos e respeitarmos a diversidade cultural e religiosa", defende, salientando que esta questão torna-se ainda mais pertinente em França, onde há uma “enorme comunidade muçulmana”, que contribuiu de forma “significativa para o país” e que deve poder “praticar a sua fé, sem perturbar ninguém”.

Aisha conta até que a abaya está na moda. “Muitas pessoas não muçulmanas usam, até na moda, há várias celebridades e marcas, nomeadamente francesas, que desenham esses vestidos compridos e as modelos usam-nos na passerelle, em met galas, e ninguém diz nada, agora eu ir para a escola com um vestido comprido não posso, não tem lógica nenhuma”, desabafou.

O respeito pela liberdade religiosa “é um princípio fundamental que deve ser mantido para garantir a coexistência pacífica da sociedade”, alerta Aisha, que apesar de nunca ter vivido uma “situação constrangedora” em Portugal, admite já ter sido confrontada com olhares e comentários, sobretudo nos transportes públicos.

Aos 19 anos, Aisha tem ambições e desejos como qualquer jovem da sua idade, “simplesmente, a minha religião é muçulmana”. Mas isso, vincou, não a torna diferente dos demais, é apenas “aquilo com que nos identificamos, a nossa cultura, a nossa religião, e se há respeito há tudo”.

Ainda assim, já teve de pôr de lado a sua religião para, por exemplo, arranjar emprego: “A maioria dos sítios não aceita mulheres a trabalhar com lenço”.

“Estou a trabalhar num loja e disseram-me que não faz parte do uniforme”, mas como ”não uso lenço ou a abaya todos os dias" acabou por ser uma “escolha própria, minha” e não uma imposição - ainda que o tenha sido.

Na escola, nunca teve problemas com o que escolhia vestir. Apesar da curiosidade natural sobre costumes diferentes, Aisha considera que os jovens da sua geração “são mais compreensivos” e as questões que lhe colocam não são no “mau sentido”. Convidada a colocar-se na posição das estudantes francesas, Aisha não hesitou na resposta: “Triste, fico triste”.

“[No lugar delas] ficaria triste por não poder expressar aquilo que sou, por não poder usar uma roupa com a qual me sinto confortável. (…) O facto de não poder usar um vestido comprido e ir para a escola/universidade assim, acho que me ia fazer muita confusão. Era a mesma coisa que chegar a uma rapariga [não muçulmana] e dizer-lhe que não pode ir de calças de ganga para a faculdade e tem de começar a usar roupa tapada”, lamentou.

O anúncio da proibição

Seria um domingo normal em França, não fosse o anúncio do ministro da Educação. “Não poderemos mais usar abaya na escola” em França, disse Gabriel Attal à televisão TF1, acrescentando que iria, antes do arranque do ano letivo, reunir-se com os responsáveis dos estabelecimentos escolares para ajudá-los a fazer cumprir esta proibição.

Na opinião do ministro, que assumiu funções há pouco mais de um mês, ir à escola vestindo uma abaya é “um gesto religioso destinado a testar a resistência da República sobre [um] santuário secular que deveria ser a escola”. Por isso, prometeu ser “firme sobre o assunto” porque “não devemos entrar numa sala de aula [e] ser capaz de identificar a religião dos alunos olhando para eles”.

O anúncio do governante francês é recente mas o tema já havia sido objeto de uma circular do Ministério da Educação em novembro último. Nessa circular, as abayas são definidas - assim como as bandanas e as saias longas, também citadas - como trajes que podem ser proibidos se forem “usados de forma a manifestar ostensivamente uma filiação religiosa”, ainda que, não sejam um símbolo religioso muçulmano segundo o Conselho Francês para o Culto Muçulmano (CFCM).

Segundo uma nota dos serviços do Estado, da qual a AFP obteve uma cópia, os ataques ao secularismo, muito mais numerosos desde o assassinato em 2020, perto do colégio do professor Samuel Paty, aumentaram 120% entre o ano letivo 2022/2023 e 2021/2022.

Desde a lei de 15 de março de 2004, "nas escolas, faculdades e liceus públicos é proibido o uso de sinais ou trajes pelos quais os alunos demonstrem ostensivamente filiação religiosa".

O que diz a ONU?

As limitações às manifestações religiosas, incluindo restrições de vestuário, só devem ocorrer “em circunstâncias muito específicas”. Questionada, esta semana, sobre a decisão do Governo francês, uma porta-voz do gabinete ressalvou que a ONU não pode comentar uma medida que ainda não foi implementada.

Ainda assim, Marta Hurtado apontou que medidas deste género "só devem ser estabelecidas em circunstâncias limitadas, nomeadamente por razões de segurança e ordem públicas, saúde pública ou moralidade".

Hurtado recordou que o direito internacional "estabelece que as medidas adotadas em nome da ordem pública devem ser adequadas, necessárias e proporcionais".

"Alcançar a igualdade de género requer a compreensão das barreiras que impedem as mulheres e as raparigas de exercerem a sua liberdade de escolha e a criação de ambientes que apoiem a sua própria tomada de decisão, que não afeta apenas a sua escolha de vestuário", sublinhou ainda a porta-voz da ONU.

Com LUSA

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