Nas alegações finais deste julgamento, no passado dia 13 de julho, o Ministério Público (MP) pediu 25 anos para a mãe de Jéssica, Inês Sanches, e para a suposta ama da menina, Ana Pinto, o seu marido, Justo Montes, e a filha, Esmeralda Montes. Os quatro foram, esta terça-feira, condenados à pena máxima de 25 anos de prisão.
Os quatro arguidos foram condenados por homicídio qualificado por omissão, considerando o juiz presidente do coletivo de juízes, Pedro Godinho, que a criança era "um ser humano indefeso que perdeu o direito à infância de uma forma medieval".
"A pergunta que não sai da cabeça é 'porquê?'", disse o juiz, que ao longo de mais de duas horas de leitura do acórdão fez questão de se dirigir aos arguidos numa linguagem coloquial por entender que assim compreenderiam melhor o que lhes estava a ser dito.
"Vamos ficar sem esta resposta", salientou.
Quanto ao filho da alegada ama, Eduardo Montes, também arguido neste caso, o MP deixou cair todos os crimes que constavam do despacho de acusação e hoje o tribunal absolveu-o.
À saída do julgamento, Eduardo Montes disse aos jornalistas que "nunca deveria ter vindo para este processo" e, interrogado sobre a condenação da sua família, respondeu apenas que "foi feita justiça".
Durante a leitura do acórdão o juiz indicou que este julgamento teve várias peripécias, sem que os arguidos relatassem os factos que levaram à morte da criança: “Quem lá esteve não quis contar o que aconteceu e o pouco que disse eram mentiras.”
A única testemunha "que falou", afirmou, foi Jéssica, através das perícias médico-legais que lhe foram feitas após a morte.
"Felizmente tivemos a ajuda da ciência", disse, adiantando que a investigação científica permitiu determinar que durante cinco dias a criança foi sujeita a mais de 70 pancadas e a mais de 70 picadas, além de queimaduras na face, violentos puxões de cabelos e três fortes embates com a cabeça numa superfície dura.
Os sinais evidentes do sofrimento da menina foram ignorados durante várias horas pela mãe, facto que a investigação considerou que também poderá ter contribuído para a morte da criança, poucas horas depois, no Hospital de São Bernardo, em Setúbal.
Dirigindo-se a Ana Pinto, a Justo Montes e à filha de ambos, Esmeralda Montes, o juiz disse que tinham obrigação de garantir o bem-estar da menina, mas apressaram-se a entregar a criança, ligando insistentemente para a mãe, como demonstrado na investigação, para que Jéssica não morresse com eles.
De seguida, acrescentou, viajaram para Leiria, demonstrando, ao fugir, que sabiam a responsabilidade que tinham.
"Era um ser humano indefeso. Não há nenhuma comunidade no mundo que tolere o que foi feito, nem em qualquer parte da História. Podemos recuar à Idade Média ou à Pré-História", disse Pedro Godinho.
Já em relação a Inês Sanches, o tribunal determinou, segundo a explicação do juiz, que houve dois momentos a agravar a culpa da arguida: quando a entregou por duas vezes àquela família. "Já tinha havido agressões anteriores", disse.
A mãe de Jéssica foi também condenada por violação grosseira do dever de garante da saúde da filha. A moldura penal no caso de homicídio qualificado é de 12 a 25 anos de prisão (pena máxima em Portugal), podendo ser atenuada, mas o juiz disse que uma redução "não era tolerável".
"É preciso passar a ideia à comunidade de que está segura quando navegamos no patamar do horror", frisou.
Relativamente ao pedido de indemnização pedido pelo pai da criança (separado da pai e emigrante), o tribunal atribuiu um valor de 50 mil euros, considerando que foi um "pai simbólico" e que também falhou na proteção da menina, tal como o Estado português.
"O tribunal entendeu que nem o pai, nem a mãe, nem o Estado são dignos de representar a Jéssica. Ninguém merece. Mas há um sofrimento de pai e esse é digno de tutela jurídica", declarou Pedro Godinho.
Em 2019, a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças abriu um processo de promoção e proteção de Jéssica Biscaia, "por a criança estar exposta a ambiente familiar que poderia colocar em causa o seu bem-estar e desenvolvimento".
A medida de proteção entretanto decidida não foi aceite pelos pais, o que originou o envio do processo ao Ministério Público em 2020. Após algumas diligências, o processo acabou por ser arquivado em 2022, com o casal já separado.
Juiz-presidente destaca celeridade do julgamento
"Esta menina faleceu o ano passado, no dia 20 de junho, o processo terá começado um ou dois dias depois e, efetivamente, hoje, dia 1 de agosto, temos uma decisão de primeira instância, que, de certa forma, declara o direito relativamente àquilo que o Tribunal de Setúbal entendeu que se passou", destacou o juiz-presidente do Tribunal de Setúbal, António Fialho, em declarações aos jornalistas.
António Fialho justificou esta incomum explicação dada por um juiz-presidente à porta de um tribunal por considerar que a "criança merece que se explique" e porque o caso chocou não só os magistrados envolvidos como todo país.
"Acho que as pessoas merecem também que, efetivamente, nós demos uma palavra. De haver alguma celeridade nesta decisão", acrescentou.
Sem se pronunciar em relação à decisão sobre as penas e ao que ocorreu durante o julgamento, o juiz-presidente enfatizou também "o pormenor que foi posto na análise da prova".
"Era um julgamento muito difícil. Portanto, eu acho que o coletivo do Tribunal de Setúbal, nesse aspeto, esteve muito bem", considerou.
Avó paterna lamenta não existir prisão perpétua
A avó paterna, que terá pedido a tutela da criança, disse estar satisfeita com a condenação dos arguidos a 25 anos de prisão, mas lamentou não existir pena perpétua em Portugal.
"Infelizmente não há prisão perpétua porque era isso que eles mereciam. O que fizeram à minha menina não se faz a um animal, muito menos a uma criança de três anos e meio", disse Maria Lino, embora considerando que foi feita justiça pela morte de Jéssica Biscaia.
A avó disse ainda que há dois anos pediu a tutela da neta, por considerar que estava a haver violência doméstica entre o filho e a mãe de Jéssica, quando ainda estavam juntos.
"Pedi a menina ao meu filho para ficar com ela. Havia violência porque ela atirava-se ao meu filho e ele a ela e depois vinha a polícia. A queixa é contra o meu filho, mas quem decretava violência doméstica era ela", disse.