Opinião

Falta de médicos em Portugal: as políticas necessárias

Opinião de Tiago Correia, comentador SIC.

Tiago Correia

A falta de médicos em Portugal regressou à agenda mediática, mesmo que nunca tenha saído do dia-a-dia de quem (des)espera por consultas e cirurgias. Ganhou destaque nas últimas eleições perante a constatação de que o número de pessoas sem médico de família não só teima em não baixar, como pode piorar: em 2021 um milhão de pessoas não tinha médico de família e há a possibilidade de perdermos até 20% de médicos de família no final de 2022. Nos hospitais a situação não é muito diferente.

As explicações que temos ouvido permitem perceber partes do problema: a dupla dificuldade de atrair e manter os profissionais onde são mais necessários. Claro que a concorrência entre o SNS e o setor privado coloca pressão onde o trabalho é mais intenso, menos reconhecido, mais desgastante e pior remunerado. Contudo, a questão ultrapassa a concorrência público-privada. A concorrência também acontece entre especialidades (aquelas que os médicos internos mais e menos desejam), entre prestadores e serviços (competição privados-privados e públicos-públicos) e entre localizações (menor atratividade de espaços rurais e interiores face a espaços urbanos e do litoral). A isto acresce uma nova geração de profissionais para quem o serviço médico à periferia significa um acontecimento histórico longínquo e a construção do SNS um dado adquirido, sem carga afetiva nem valor ideológico.

Por isso, não é inteiramente claro se dificuldades em aceder a consultas e cirurgias representa escassez de médicos ou incapacidade de os distribuir. Tenho dúvidas que o problema fique resolvido com a abertura de mais vagas nas faculdades de medicina. Não nego essa necessidade perante o envelhecimento dos médicos em exercício em Portugal. O que argumento é que é preciso ir muito mais longe no tipo de políticas para garantir que os médicos que formamos estão onde mais precisamos.

Agrupam-se em quatro tipos de políticas a forma de intervir sobre o mercado de trabalho da profissão médica, o que é extensível às demais profissões qualificadas da saúde.

Primeiro, as políticas “de produção”, ou seja, de captação de novos estudantes. Estas políticas dizem respeito à ligação entre os ministérios da educação, do ensino superior e da saúde. Trata-se de políticas que definem como se acede aos cursos superiores, a estrutura e o conteúdo dos currículos e as condições técnicas, científicas e de infraestruturas das instituições de ensino.

Segundo, as políticas “de entrada e saída”, ou seja, as que regulam o acesso ao exercício profissional. Aqui estão envolvidos o ministério da saúde, na dupla condição de legislador e empregador, outros empregadores públicos e privados, Ordens profissionais, outras associações e sindicatos. Neste tipo de políticas definem-se as formas de favorecer ou conter a emigração e a imigração, de atrair profissionais desempregados ou que saíram do setor. Como se percebe, este tipo de políticas vive na tensão constante entre os diversos atores em presença, além de que ao estar na interseção entre o setor da educação e do mercado de trabalho, também pode colocar tensão entre os ministérios da edução, do ensino superior, da saúde e da economia.

Terceiro, as políticas “contra a má distribuição e ineficiências”. Outra vez, coloca em presença o ministério da saúde numa dupla condição, outros empregadores públicos e privados, Ordens profissionais, outras associações e sindicatos. Trata-se de políticas que incidem sobre a produtividade e o desempenho, o trabalho em equipa, as carreiras profissionais e os mecanismos de atração e retenção de profissionais.

Quarto, as políticas “de regulação do setor privado”. Trata-se das políticas-chapéu de todas as outras, ou seja, aquelas sem as quais as demais políticas apenas podem alcançar resultados limitados. O principal responsável é o governo no seu conjunto, porque não pode o(a) ministro(a) da saúde remar contra o conselho de ministros face a questões tão sensíveis e sistémicas quanto a regulação do multiemprego (questões como a dedicação plena ou exclusiva, para quem e sob que condições), os critérios, as condições e a fiscalização da qualidade da formação inicial e ao longo da vida profissional e, por último, como assegurar a melhoria da prestação de cuidados à população, sabendo-se que várias opções podem ser escolhidas entre a prestação única do SNS, a liberdade de concorrência ou a complementaridade com o setor privado.

Fica assim mapeado o que está em causa quando se pretender intervir nos recursos humanos da saúde tendo em vista uma reforma sistémica, duradora e equilibrada.

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