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Ciência da causalidade: da circunstância à evidência

A ocorrência de desastres naturais e outros não tão naturais quanto isso tem dado azo a muita investigação e debate relativamente aos fatores que possam estar na sua génese.

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Rui Pita Perdigão

Sempre que há um sinistro, é natural procurar as causas subjacentes. Por vezes, o nexo de causalidade parece evidente. No entanto, muitas vezes acaba sendo meramente circunstancial. Por isso, em Ciência, como no Direito, há que tomar com grande prudência a avaliação de prova antes de emitir qualquer juízo conclusivo relativamente ao mérito que possa ter como evidência cabal.

O conceito de causalidade tem animado inúmeros estudos, reflexões e debates desde tempos imemoriais. Ainda assim, na vida prática do dia-a-dia a noção tem um significado bem concreto e visceral, de raiz fenomenológica: a existência de uma relação física de causa-efeito. Para tal, tem de haver sujeitos ou agentes atuantes, ações por estes encetadas, e consequências ou efeitos de tais ações. Na prática, em geral há interações entre múltiplos fatores, processos e consequências. Em ciências físicas, tal é quantificável através de noções fundamentais como o trabalho realizado sobre um alvo, nele provocando uma alteração de estado.

Por exemplo, se eu der um pontapé numa bola resultando no seu deslocamento, eu sou o agente causal, o pontapé é a ação causal e o movimento da bola que dali resulta é o efeito. Tudo muito simples. Pois é.


A causalidade não é estrada de um sentido

Todavia, a causalidade não é uma estrada linear com um só sentido. Como sucede em toda a ação física, existe retribuição de alguma forma. Eu dou um pontapé na bola, posicionando-me como agente causal. No entanto, se estiver descalço fico com o pé a doer por uns breves instantes. Embora a bola tenha sido o objeto da minha ação causal, também “retribuiu”, pelo princípio mecânico da ação-reação. Aí a potencial dor no pé é um efeito da (re)ação causal da bola junto de mim, invertendo os papéis. Sendo que a escala da consequência é bem diversa dada a enorme diferença material entre mim e a bola. Tudo isto é quantificável, mensurável, e verificável experimentalmente. Ainda assim, neste caso podemos posicionar-me como causador primordial, porquanto fui eu que iniciei o processo de ação que depois resultaria em reação. Até aqui tudo bem.

No entanto, há situações muito mais complexas em que se torna difícil discernir quem faz o quê a quem resultando no quê. Situações que envolvem uma panóplia de processos e interações complexas, como seja a dinâmica do meio ambiente numa coevolução entre processos físicos, químicos, biológicos e até sociais. Tornando assim difícil andar a medir fluxos causais entre processos em muitas situações do dia-a-dia. E ainda mais quando se trata de aferir relações causais subjacentes a desafios ambientais que marcam a atualidade. Por isso apesar de haver processos relativamente evidentes, há ainda muitos outros em aberto.

Causalidade na complexidade, ou complexidade na causalidade

Por forma a discernir causalidade por entre a complexidade de ações, interações e retroações, o processo científico tem vindo a desenvolver e apresentar toda uma diversidade de métodos de análise para atribuição causal. Uns relativamente primitivos, outros bem mais sofisticados. Todavia, será que tais métodos captam efetivamente a causalidade? Vejamos alguns exemplos.

Uma forma bastante primitiva e corrente de tentar aferir a eventual influência de um fenómeno sobre outro consiste em comparar o comportamento dinâmico entre eles mediado por um hiato temporal necessário à hipotética transmissão de energia que veicule a influência causal.

Por exemplo, ao aumentar o grau de aquecimento do fogão sobre uma panela com água e fechada com tampa transparente, nota-se de seguida a expansão da água levando à subida do seu nível dentro da panela. Regista-se essa informação em séries temporais, uma com a temperatura medida a cada 10 segundos. Outra com o nível da água na panela também a cada 10 segundos.

Comparando a progressão entre as duas variáveis (temperatura e nível da água) e atendendo a que o nível começou a subir após começar a aquecer, depreende-se que o aquecimento tenha resultado no aumento do nível. Neste caso, depreende-se bem pois é possível aferir a transferência de energia que efetivamente teve lugar entre o agente causal e o sistema alvo, neste produzindo efeito mensurável e atribuível termodinamicamente.

No entanto, trata-se de um diagnóstico de cariz correlativo e, portanto, meramente circunstancial. Será que ter variáveis fortemente correlacionadas com hiato temporal é garantia de que a primeira influenciou a segunda? Não necessariamente. É bem sabido que correlação não implica causalidade.

Não faltam exemplos de correlações espúrias que demonstram a vácua circunstancialidade de tal forma de inferir causalidade. Podem ver este site muito engraçado cheio de exemplos.

Correlação como mero indício circunstancial... mas não causal

Dou um outro exemplo muito simples. Consideremos dois irmãos muito semelhantes na sua natureza e forma de vida, ainda que sem qualquer contacto entre si. O mais velho graduou-se em engenharia aos 23 anos, abriu uma empresa aos 24, casou-se aos 25 e ganhou os primeiros cabelos brancos aos 26. Atenção que não vamos culpar a empresa nem o casamento pelos cabelos brancos. O rapaz está feliz, a vida corre-lhe bem, mas aos 30 tem o cabelo todo branco.

Entretanto, os adeptos das correlações e tendências começam logo a medir o aumento do número de cabelos brancos e a comparar com o saldo da conta bancária. Espetacular, o rapaz ganha mil euros por cada novo cabelo branco. A correlação está lá, mas a evidência de tantos outros que ganharam cabelos brancos sem dinheiro desmonta trivialmente essa hipótese.

Dito isto, o irmão mais novo fez exatamente o mesmo percurso, desfasado pela diferença de idades de dois anos entre eles. Cada traço no registo de vida do irmão mais velho aparece depois como traço na vida do mais novo. Todavia, tal nada diz relativamente ao poder causal do mais velho sobre o mais novo. Quando muito, a dinâmica de ambos terá sido determinada por um mesmo fator subjacente, e.g. partilharem semelhante legado genético dos seus progenitores, bem como outras semelhanças do que foram encontrando ao longo da vida. Aqui a correlação entre eles decorre de partilharem uma mesma estrutura causal subjacente. Emergiram do mesmo sistema dinâmico, parecem causalmente ligados, mas não estão.

Informação condicional como poder de inferência... mas não causal

Sendo evidente que uma correlação desfasada não implica causalidade, tal fornece, todavia, capacidade de previsão através do inerente poder de inferência. No caso dos irmãos acima em apreço, permite inferir a dinâmica do mais novo com dois anos de antecedência a partir do conhecimento do que vai sucedendo ao irmão mais velho com o qual está correlacionado.

A capacidade de inferir o comportamento de um fenómeno a partir do conhecimento de outro constitui uma outra forma primitiva de aferição de eventual causalidade. Digo eventual pois tal não implica necessariamente que haja qualquer relação de causa-efeito entre a variável que informa (a "predictora") e a variável que é inferida (a "predictanda"). O irmão mais velho é um excelente preditor relativamente ao mais novo com limite temporal de dois anos de antecedência, mas não se posiciona como agente causal de nada do que suceda ao mais novo. Está apenas a montante do mais novo numa rede de "inferência Bayesiana", em que o conhecimento de uma variável permite reduzir a incerteza relativamente a outra, traduzindo-se em informação acerca desta última. Relacionada com essa noção há toda uma variedade de métricas de fluxo de informação que ainda hoje são confundidas por muitos como sendo diagnósticos de causalidade. Não são. Podem ser úteis para inferência e previsão, sem dúvida, mas não são clarificadoras relativamente à existência de relação de causalidade entre eles.

Modelação matemática como laboratório de hipóteses... mas não causal

O poder informativo que advém do conhecimento acerca de determinado fenómeno a partir do conhecimento sobre outros não implica, portanto, que haja dependência causal entre eles. Todavia, permite desenhar modelos matemáticos relacionando variáveis representativas de tais fenómenos. Ao fazer, reproduz relações de acoplamento a nível de co-informação, sejam covariação estatística (associada às assinaturas correlativas) ou covariação cinemático-geométrica (associada a elos de inferência local como sejam derivadas cruzadas, e.g. uma relação entre a taxa de variação de uma variável relativamente à taxa de variação da outra).

Sem entrar em detalhes formais, basta ter em atenção que tais modelos permitem simular o comportamento conjugado de várias variáveis a partir de relações de inferência, de como a informação acerca de uma se propaga para conhecimento acerca das demais.

Assim, através da modelação é possível ligar e desligar acoplamentos entre variáveis para ver em que medida a simulação resultante se aproxima ou não à progressão registada em dados observacionais. O que mostra que tais ligações permitem descrever ou mesmo prever o que se passa num sistema observado. Fornecendo indícios relativamente ao tipo de relações que possam existir entre processos. Sem que, todavia, tal indique que tal seja a única forma de produzir os mesmos resultados. Pode haver outras fórmulas, com outras interações, educadas por outras hipóteses, que produzam a mesma representação matemática dos fenómenos.

Podemos escrever modelos matemáticos articulando variáveis acopladas por relações de inferência totalmente espúria, mas ainda assim informativa entre elas, como seja entre os irmãos acima referenciados, ou entre processos em curso nas respetivas vidas. Todavia, o conhecimento de como as variáveis variam conjuntamente nada diz relativamente a uma eventual relação de causa-efeito entre elas. Daí que nem as tradicionais métricas estatísticas (incluindo teorias de informação) nem cinemático-geométricas (incluindo em sistemas dinâmicos) têm a capacidade de por si só facultar diagnósticos conclusivos de causalidade.

E agora? Como realmente aferir fisicamente a causalidade?

Cientes destas dificuldades, nós temos estado a desenvolver novos caminhos emergentes em física da informação e causalidade, tendo apresentado perspetivas relativamente a estas matérias em publicações científicas como Perdigão et al 2020 (DOI: 10.1029/2019WR025270) na revista científica WRR, Hall e Perdigão 2021 (DOI: 10.1126/science.abg6514) na revista Science, e mais recentemente os avanços no desvendar dos sabores de causalidade em Perdigão 2024 (DOI: 10.5194/egusphere-egu24-6535) relativamente ao qual levantei um pouco o véu no mais recente congresso da European Geosciences Union (EGU) em Viena.

As nossas perspetivas têm assim vindo a materializar-se na conceção, desenvolvimento e implementação de novas soluções, tanto a nível teórico e fundamental, como a nível de inovação e aplicação no terreno. Seja a nível das organizações que coordeno desde a vertente académica à empresarial. Seja em consórcios internacionais como C2IMPRESS, sob a égide da União Europeia no quadro Horizon Europe com nº 101074004. Seja ainda no nosso programa de tecnologias quânticas para as ciências da Terra e do Espaço corolário da nossa flagship QITES, também reportados na EGU em Perdigão e Hall 2024 (DOI: 10.5194/egusphere-egu24-5308).

Neste sentido, produzimos métodos e tecnologias não só para avaliar sinais indiciadores de causalidade em dados observacionais e modelos físico-matemáticos, mas também para efetivamente medir e quantificar as assinaturas físicas inerentes à materialização de processos causais, tanto em ambientes naturais, como laboratoriais. Para tal, desenvolvemos sensores in situ e sensores remotos aptos a tomar o pulso ao planeta também em termos causais. Assim, quando tudo parece baralhado em termos de redes de inferência e sistemas dinâmicos, encontramos clareza nos sinais detetados pelas nossas tecnologias: sejam sinais indutores de emergência de instabilidade nos oceanos, atmosfera ou litosfera, à materialização de ação causal direta, indireta, conjugada e sinergética por entre a complexidade do meio ambiente.

Hoje conseguimos discernir de forma mais clara, objetiva e independente o papel concreto de mecanismos causais subjacentes a fenómenos diversos incluindo desastres ambientais, as suas interações e consequências, distinguindo entre fatores preditivos e fatores efetivamente causais. Em alguns casos, confirmando os indícios que já haviam sido apresentados ao longo de décadas através das técnicas tradicionais de evidência circunstancial. Mas em outros casos demonstrando que nem tudo o que parece, é. Ajudando deste modo a desenvolver soluções que permitam abordar a raiz do problema ao invés de apenas intervir sobre meros sintomas.

Física da causalidade ao serviço da sociedade

Na prática, tudo isto é de enorme utilidade para verificar a validade de diligências de atribuição física, seja para melhorar técnicas de prevenção, resposta e planeamento, seja para aferir responsabilidades no âmbito de processos de seguro perante sinistros no estabelecimento cabal de nexo causal subjacente ao sinistro e suas consequências. Bem como no âmbito de peritagens a locais de sinistros para efeito de apuramento de eventuais responsabilidades civis ou criminais. Exemplos abundam e.g. sinistros rodoviários, ferroviários ou aeronáuticos, bem como colapso de diques, aluimentos de terras, cheias, incêndios urbanos, rurais ou florestais.

Em tais aplicações de grande relevância e responsabilidade, há que apostar num contínuo aperfeiçoamento das técnicas de apuramento de nexo causal, porquanto a ciência não é um produto acabado. Há sempre situações em que as técnicas tradicionais atribuem responsabilidade causal de desastres e outros sinistros a processos que as permitem prever, que são matematicamente verossímeis, mas que fisicamente não estiveram na sua origem.

Há ainda, naturalmente, todo um conjunto de sinistros em que os métodos estatísticos e matemáticos tradicionais não conseguem determinar cabalmente se determinado evento extremo decorreu como consequência da ação causal de determinados processos ambientais. Não conseguem determinar por se limitarem a caracterizar indícios de prova circunstancial. Mas a nossa ciência vai trilhando o seu caminho, fornecendo o que faltava: evidência material.

A ciência é assim mesmo. Sempre a aprender, sempre a evoluir, sempre a desbravar novo conhecimento. E sobretudo sempre a criar valor, a servir causas relevantes, porquanto a nossa ciência não se esgota nos estudos meramente académicos. Como ciência empreendedora, está sempre intimamente ligada ao serviço da sociedade e do meio ambiente. É para isso que cá estamos.

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