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"Deu uma gargalhada e correu": soldado norte-americano "foge" para a Coreia do Norte

No dia em que iria embarcar para os Estados Unidos, Travis King fugiu do aeroporto e foi, numa tour, até à zona desmilitarizada entre as duas Coreias. Acabou por fugir do grupo e atravessa fronteira "sem autorização".

Kim Hong-Ji

Filipa Traqueia

Um soldado norte-americano, que cumpria uma missão na Coreia do Sul, atravessou voluntariamente a fronteira em direção à Coreia do Norte. Travis King estava na iminência de regressar aos Estados Unidos devido a um processo disciplinar quando fugiu. É o primeiro norte-americano sob custódia das autoridades norte-coreanas em perto de cinco anos.

Travis King, um soldado de 23 anos, enfrentava um processo disciplinar por acusações de agressão, tendo passado os últimos dois meses numa prisão sul coreana. Esta segunda-feira, o jovem ia ser enviado para casa, em Fort Bliss, no estado do Texas, onde poderia enfrentar novas ações disciplinares.

No entanto, a viagem para os Estados Unidos acabou por não acontecer: Travis King fugiu do aeroporto, juntou-se a uma visita guiada à zona desmilitarizada no dia seguinte e atravessou a fronteira.

O Comando das Nações Unidas – responsável pela gestão da zona desmilitarizada na fronteira entre os dois países – confirma que um cidadão de nacionalidade norte-americana atravessou, “sem autorização”, a fronteira entre as Coreias.

Segundo as autoridades sul-coreanas, Travis King passou a fronteira para a Coreia do Norte durante uma visita guiada à vila de Panmunjom, na tarde desta terça-feira.

A mãe de Travis King, Claudine Gates, mostrou-se chocada com a decisão do filho. Em declarações à ABC News, afirmou que não consegue imaginar o jovem “a fazer uma coisa dessas”. Disse ainda que a última vez que falou com o filho, este lhe tinha dito que iria regressar brevemente a casa.

“Deu uma gargalhada” e correu em direção à fronteira

Um dos turistas que integrava o grupo contou à CBS que o jovem “deu uma grande gargalhada ‘Ha Ha Ha’ e começou a correr entre os edifícios”. Ao princípio, o grupo pensou que poderia ser uma piada de mau gosto, mas acabou por perceber que a situação era real.

Não se sabe se Travis King tinha premeditado a fuga, mas existe uma forte possibilidade do plano ter sido pensado com antecedência. Jacco Zwetsloot, anfitrião de um podcast norte-coreano que trabalhou numa empresa de visitas à zona desmilitarizada, afirma que é preciso planear bem uma visita deste género.

“De forma nenhuma esta pessoa poderia escapar do aeroporto num dia e marcar uma dessas tours no outro”, cita a BBC.

Para poder integrar a visita guiada, é necessário uma autorização que demora cerca de três dias a ser concedida. É também preciso fornecer dados pessoais, tais como o número do passaporte, a identificação militar e qual a área onde opera, explica.

Desde a pandemia de covid-19, a marcação destas tours tornou-se ainda mais complicada, havendo apenas duas empresas a oferecer este serviço a turistas estrangeiros.

Um “incidente” que pode custar caro à Casa Branca

A tensão entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos tem vindo a escalar nos últimos meses. Por um lado, Pyongyang realizou centenas de testes com mísseis balísticos; por outro, Washington tem aumentado o apoio militar à Coreia do Sul.

A assessora da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, afirmou que o Governo está a trabalhar com a Coreia do Norte, no sentido de “resolver este incidente”. Os Estados Unidos já tinham desaconselhado os cidadãos a viajar para a Coreia do Norte devido aos “sérios risco de detenções de longo prazo”.

Em conferência de imprensa, o secretário da Defesa, Lloyd Austin, reconhece que é provável que o soldado norte-americano esteja sob custódia das forças norte-coreanas, manifestando preocupação com o estado de saúde do jovem.

“Estamos a monitorizar e investigar a situação”, disse Lloyd Austin aos jornalistas. “Isto irá desenvolver-se nas próximas horas e dias, iremos manter-vos atualizados.”

As autoridades norte-coreanas não reagiram ao episódio, mas é possível que Travis King venha a ser uma vantajosa moeda de troca para o Governo de Kim Jong-Un.

Segundo Yang Moo-jin, presidente da Universidade de Estudos Norte Coreanos, no Sul da Coreia, citado pelo The Guardian, “é provável que a Coreia do Norte use o soldado para efeitos de propaganda num curto prazo e como moeda de troca a médio longo prazo”.

Não é a primeira vez que um soldado norte-americano deserta e foge para a Coreia do Norte. Em 1965, Charles Jenkins atravessou a zona desmilitarizada, tendo sido, depois, protagonista de filmes de propaganda norte-coreanos. Casou com uma estudante de enfermagem japonesa, que tinha sido raptada no Japão por agentes da Coreia do Norte, conta a AP.

Outros cidadãos dos EUA foram detidos durante visitas turísticas à Coreia do Norte. Em 2017, a história de Otto Warmbier, um estudante norte-americano, correu mundo: depois de ter sido detido durante 17 meses por uma variedade de crimes - entre os quais subversão, atividades anti-Estado e espionagem -, o jovem foi libertado e chegou aos Estados Unidos em coma. Otto Warmbier acabou por morrer poucos dias depois.

Panmounjom: uma vila deserta entre dois países em guerra

A pequena vila de Panmounjom está localizada na zona desmilitarizada que se estende pela fronteira entre as duas Coreias. Não tem habitantes, mas foi palco de alguns dos mais icónicos momentos na relação diplomáticas dos dois países. Foi nesta vila que foi assinado o armistício, em 1953.

Em 2019, o então Presidente Donald Trump dirigiu-se à zona desmilitarizada para um encontro com o líder norte-coreano, Kim Jong Un. Um momento tornou-se histórico: os líderes dos dois países marcaram o encontro com um aperto de mão. Contudo, a diplomacia entre Washington e Pyongyang colapsou pouco tempo depois, devido a divergências sobre sanções.

Apesar do forte dispositivo de ambos os lados da fronteira, o lado sul coreano da zona desmilitarizada tornou-se uma atração turística. Antes da pandemia de covid-19, cerca de 100 mil turistas visitavam por ano esta zona restrita entre os dois países, avança a AP. As tours foram suspensas durante a pandemia, tendo voltado a operar no ano passado.

Ao contrário do que se passa no sul, na margem norte da zona desmilitarizada não é comum a presença de civis.

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