"Queremos que as marcas saibam que os trabalhadores são pressionados pela fábrica a dizer 'palavras simpáticas' quando entram em contacto com eles. Queremos que as marcas conheçam a realidade no terreno. É impossível ter qualidade de vida com os salários atuais."
Este apelo é de um funcionário de uma fábrica têxtil em Myanmar e é revelado pelo relatório "Resistência, assédio e intimidação", da Business & Human Rights Resource Centre (BHRRC), uma Organização Não-Governamental (ONG), que analisa o cumprimento dos direitos humanos nas empresas.
Desde que a Junta Militar tomou o poder em Myanmar, em fevereiro de 2021, muitos trabalhadores do setor têxtil assumiram a luta pelo fim da ditadura e restauração da democracia, estando na linha da frente do Movimento de Desobediência Civil do país.
O relatório revela que os líderes sindicais foram obrigados a esconderem-se e os trabalhadores fabris a calarem-se sob pena de sofrerem repercussões. Mais de 300 dirigentes sindicais foram detidos e pelo menos 55 mortos. Porta a porta, as forças armadas do Myanmar já revistaram casas, locais de trabalho e albergues.
As fábricas passaram a usar a ditadura para reverter os direitos e proteção dos trabalhadores conquistados ao longo de mais de duas décadas, diz o relatório. Em março de 2022, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) criou uma Comissão de Inquérito para investigar estas violações e deplorou o "contínuo assédio, intimidação e detenções arbitrárias de trabalhadores ativistas, sindicalistas e outros".
A Business & Human Rights Resource tem analisado o "aumento significativo do abuso dos trabalhadores e dos direitos humanos" desde fevereiro de 2021. Foram denunciados mais de 100 casos de supostos abusos cometidos contra 60.800 funcionários empregados em 70 fábricas que fornecem, ou forneceram até há pouco tempo, grandes marcas internacionais, como Adidas, C&A, Zara, Bershka, Guess, H&M, Lidl e Primark, denúncia o relatório.
Os dados levantam "sérias questões para as marcas e para os investidores em relação à (..) proteção dos trabalhadores das redes de fornecimento". Estes casos são "provavelmente a ponta do iceberg, dadas as severas restrições às liberdades cívicas" e o "risco de represálias para os trabalhadores que se manifestem contra os abusos".
A nível internacional têm sido vários os sindicatos a deixar apelos a estas marcas para se retirarem de Myanmar até que a democracia seja restabelecida. Até agora há apenas duas empresas que o fizeram: o gigante britânico de retalho Tesco e o grupo alemão Aldi.
Marcas acusadas de "priorizar os lucros sobre os direitos humanos"
O setor têxtil emprega cerca 700.000 pessoas em Myanmar. Na sequência do golpe militar muitas das marcas, fornecidas pelas fábricas do país, suspenderam as encomendas.
No entanto acabaram por ser retomadas pouco tempo depois sob pretexto da proteção dos empregos. Mas o relatório realça que a mesma preocupação, em relação à defesa do emprego, não foi manifestada no início da pandemia.
Nessa altura algumas das marcas solicitaram o cancelamento de encomendas, mostrando "pouca consideração pelos trabalhadores", que "foram despedidos aos milhares sem pagamento de salários quando as fábricas foram forçadas a fechar".
Os grupos de trabalhadores alegam que as grandes marcas estão a "priorizar os lucros sobre os direitos humanos" e a "beneficiar da repressão causada pelo regime militar".
Os trabalhadores do setor têxtil, onde 90% são mulheres, recebem o equivalente a dois euros por dia. Antes do golpe militar, os salários nesta indústria rondavam os 3,5 euros por dia.
Mais de metade dos casos (55) identificados pela Business & Human Rights Resource envolvem o corte e o não pagamento de salários. Enquanto que quase um terço dos casos correspondem a horas extra obrigatórias e sem remuneração.
Segundo o relatório, há também casos em que as fábricas, para cortarem nas despesas com salários, despediram os trabalhadores para os recontratar - ou substituí-los - como trabalhadores temporários com salário diário (recebem apenas 75% do salário mínimo).
A violência e o assédio
Vários sindicatos sinalizaram também à ONG que a violência e o assédio baseados no género estão a aumentar em Myanmar.
Segundo o relatório, as trabalhadoras enfrentam maiores riscos, tanto dentro como fora das fábricas, em relação aos homens. Há relatos de diversos casos de assédio sexual e abuso físico e verbal de mulheres.
Em maio de 2022, segundo o relatório, as trabalhadores da fábrica Nadia Pacific Apparel Co. foram alvo de socos no peito e na cabeça, chutos, gritos e tratadas como "cães". Na Hesheng Myanmar – que produz artigos de couro para a Moschino e Guess - uma trabalhadora foi violada a caminho de casa, a meio da noite, depois de ter sido alegadamente obrigada a fazer horas extraordinárias. O relatório diz que as mulheres são muitas vezes obrigadas a fazer horas extra, até à meia-noite, e acabam por enfrentar situações de assédio.
Questionada pela ONG sobre esta situação, a Moschino espera que as fábricas que a fornecem respeitem os direitos humanos e cumpram as normas laborais. A Guess não respondeu antes da publicação do relatório.
Relação entre os donos das fábricas e os militares
A cumplicidade entre os donos das fábricas e os militares é denunciada por este relatório divulgado na terça-feira.
Muitos dos casos relatados revelam a invasão de fábricas por militares e polícias para deter trabalhadores suspeitos de participar em protestos contra a Junta Militar.
Há suspeitas que possam ser as próprias fábricas a fornecer os dados dos líderes sindicais e de ativistas, com informações de contacto e fotografias.
Há relato que alguns deles tenham sido alvejados em casa, no caminho para o trabalho ou durante protestos pacíficos. A investigação da Business & Human Rights Resource identificou pelo menos sete trabalhadores mortos pelas forças de segurança.
O direito à liberdade de associação é praticamente inexistente desde a tomada de poder pela Junta Militar. As fábricas cancelaram contratos coletivos de trabalho, informaram os sindicatos de que deixaram de ser reconhecidos e advertiu os funcionários que serão despedidos caso se filiem a um sindicato ou participem em atividades sindicais.
O relatório "Resistência, assédio e intimidação" revela que, em maio de 2021, a fábrica Gasan Apparel foi invadida por militares e polícia com o objetivo de deter trabalhadores suspeitos de terem participado em protestos contra a Junta Militar.
Os funcionários relatam ter ouvido o gerente da fábrica ao telefone com alguém, que julgam ser um oficial das forças armadas, para fornecer às forças de segurança os nomes dos dirigentes sindicais.
Nesta altura, a fábrica produzia para a Inditex (Zara e Bershka) e Mango. Após o incidente, as duas marcas confirmaram que cortaram relações com a fábrica em maio e setembro de 2021, respetivamente.
Em outubro de 2021, o presidente da comissão de trabalhadores da fábrica foi condenado a três anos de prisão, com base numa lei revista pelos militares para punir opositores ao golpe de Estado e à Junta Militar.
No início de novembro, a fábrica volta a ser invadida por militares na sequência da greve dos 350 trabalhadores, que acusaram a "direção da fábrica de agir como informadora" para a junta.
"Devem procurar sair com responsabilidade"
A Aliança Trabalhista de Myanmar pediu, em julho 2021, que as multinacionais se retirassem com responsabilidade do país até que a democracia fosse restabelecida.
Muitas marcas condenaram o golpe militar desde o início e emitiram declarações onde se comprometiam a respeitar os direitos humanos e laborais dos trabalhadores nas suas cadeias de fornecimento.
No entanto, 18 meses depois, o sindicato diz que os apelos foram "amplamente ignorados", apesar da "deterioração da situação".Se as empresas não conseguirem assegurar o cumprimento dos direitos do trabalhadores, "devem procurar sair com responsabilidade".
Segundo o relatório, o que está a ser pedido às marcas é que, em caso de saída do Myanmar, o façam com responsabilidade, com o apoio dos sindicatos e garantindo que os trabalhadores recebam todos os salários, benefícios e indemnizações devidos.
O relatório alerta as marcas que, nestas circunstâncias, "a inação não é uma opção" e que no "mínimo" deverão realizar uma investigação sobre o cumprimento dos direitos humanos e laborais, caso não aconteça, a Business & Human Rights Resource sugere a "saída responsável [...] de acordo com os padrões internacionais que as marcas adotaram".