Ataques à independência judicial, liberdade de imprensa e sociedade civil evidenciam “o mais grave retrocesso em décadas” em matéria de direitos humanos na América Latina, indica a Human Rights Watch no seu Relatório Mundial 2022, divulgado esta quinta-feira.
Este agravamento do panorama deu-se durante a pandemia de covid-19, que representou para a região um desafio a todos os níveis, mas também significou, para alguns Governos, a oportunidade de aplicar medidas arbitrárias, denuncia a organização internacional não-governamental de defesa dos direitos humanos numa parte do seu relatório anual intitulada “América Latina: Alarmante retrocesso nas liberdades fundamentais”.
“A pandemia de covid-19 foi uma desculpa maravilhosa para que líderes autoritários adotem medidas restritivas que já queriam adotar”, declara a diretora interina da Human Rights Watch (HRW) para as Américas, Tamara Taraciuk, em entrevista telefónica à agência de notícias espanhola Efe.
Bolsonaro e o ataque à democracia
O relatório da HRW aponta, por exemplo, o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, como alguém que “ameaçou o Governo democrático no Brasil, ao tentar minar a confiança no sistema eleitoral, a liberdade de expressão e a independência judicial”.
Bolsonaro tentou abalar a credibilidade do sistema eleitoral ao declarar que a votação eletrónica se presta a “fraudes”, sem fornecer quaisquer provas disso.
Mas a principal crítica feita ao chefe de Estado brasileiro tem a ver com a sua gestão da crise pandémica, porque, segundo a HRW, Bolsonaro “continuou a ignorar” as recomendações das instituições de saúde para combater a pandemia e a “promover medicamentos ineficazes” contra a covid-19.
Tamara Taraciuk sublinha que, para a HRW, “é indispensável continuar a apoiar no Brasil o trabalho dos juízes que tiveram a coragem de tentar pôr um travão aos excessos de Bolsonaro”.
Detenções arbitrárias em Cuba
Em relação a Cuba, a HRW expressa a sua preocupação com os “abusos sistemáticos contra críticos e artistas, incluindo detenções arbitrárias, maus-tratos a detidos e processos penais abusivos”, após a gigantesca contestação popular de 11 de julho passado, sem precedentes no país caribenho.
“A resposta do regime cubano foi uma repressão brutal. Documentámos casos sistemáticos de prisão arbitrária, mais de mil pessoas foram detidas durante os protestos de julho. Documentámos denúncias de maus-tratos aos detidos e também processos penais sem qualquer tipo de garantia de devido processo legal”, descreve Taraciuk.
Polémicas eleições presidenciais em Nicarágua
No caso da Nicarágua, a HRW denuncia que as eleições presidenciais realizadas a 7 de novembro “foram levadas a cabo sem as mínimas garantias democráticas”, depois de as autoridades terem previamente ilegalizado três partidos políticos da oposição e detido sete pré-candidatos presidenciais adversários do Presidente e candidato à reeleição, Daniel Ortega, mantendo muitos deles “em isolamento, em condições abusivas durante semanas ou meses”.
Sobre a situação no país centro-americano, Taraciuk diz que “na Nicarágua há uma ditadura descarada”, como ficou claro no ano passado, com “a barbaridade que ocorreu antes das eleições presidenciais, que foram uma farsa absoluta”.
Irregularidades eleitorais na Venezuela
Essa mesma falta de garantias foi replicada duas semanas depois na Venezuela, onde a 21 de novembro se realizaram eleições regionais nas quais se impuseram os candidatos chavistas, num processo eleitoral caracterizado por irregularidades que foram denunciadas pela equipa de observadores da União Europeia (UE).
A missão da UE conclui que alguns opositores políticos foram arbitrariamente impedidos de concorrer a cargos públicos, houve um acesso desigual aos meios de comunicação social, bem como falta de independência do poder judicial e falta de respeito do Estado de Direito, o que afetou a transparência e a imparcialidade das eleições.
Liberdades atacadas em El Salvador e no México
Por sua vez, os Governos de El Salvador e do México estão, observa a HRW, a levar a cabo constantes ataques antidemocráticos contra os demais poderes do Estado e contra os órgãos de comunicação social.
Em El Salvador, o executivo do Presidente Nayib Bukele substituiu os juízes do Supremo Tribunal. Os novos membros da máxima instância judicial decidiram que Bukele pode candidatar-se a uma reeleição consecutiva, apesar de a Constituição do país o proibir.
O Governo propôs também uma lei de “agentes estrangeiros” que pode limitar gravemente o trabalho de jornalistas independentes e das organizações não-governamentais (ONG) que recebem fundos do exterior.
“Estamos preocupados com as ditaduras puras e duras como a Nicarágua, Cuba e a Venezuela, mas também com estas tentativas de líderes que são eleitos democraticamente e, uma vez no poder, o que fazem é enfraquecer o Estado de direito”, diz Taraciuk.
No México, o Presidente, Andrés Manuel López Obrador, promulgou em novembro passado um acordo que dá prioridade a obras que o Governo classificou como pilares da sua administração.
Esta medida, segundo o relatório da HRW, fará com que os alvarás para tais obras sejam emitidos “automaticamente, sem cumprir os estudos exigidos”, ficando assim “isentos das regras de transparência” e tornando mais difícil o trabalho de fiscalização da imprensa.
Protestos e violência na Colômbia
Na Colômbia, os protestos ocorridos entre abril e julho de 2021 – que fizeram 84 mortos, 25 dos quais em consequência da ação policial – são também objeto de denúncia no relatório da HRW, que chama a atenção para o facto de o Governo “ainda não ter adotado medidas significativas para reformar a sua força policial”.
“Os agentes policiais dispersaram repetida e arbitrariamente as manifestações pacíficas e usaram força excessiva, muitas vezes brutal, incluindo munições reais e violência de género”, refere o documento.
“A Colômbia é o único país da América Latina onde a polícia está sob a autoridade do Ministério da Defesa, e isso, muitas vezes, torna difícil distinguir quais são as responsabilidade militares e as policiais”, acrescenta Taraciuk.
A HRW afirma que, apesar do acordo de paz de 2016 entre o Governo e os guerrilheiros das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), “a violência relacionada com o conflito assumiu novas formas e os abusos de grupos armados – incluindo assassinatos e massacres e deslocações forçadas em massa – aumentaram em zonas remotas do país em 2021”.
Violência sexual na Argentina
Na Argentina, a HRW vê com preocupação a “violência endémica” contra as mulheres, já que ela constitui uma das violações dos direitos humanos “mais duradouras”.
A ONG recordou que em 2020 houve um total de 251 homicídios de mulheres, tendo havido em apenas quatro deles uma sentença judicial.
Quanto ao direito ao aborto – legal no país desde que o Congresso aprovou uma lei, em dezembro de 2020 –, o seu exercício continua a ser “um desafio”, apresentando-se “obstáculos” no acesso à interrupção da gravidez, adverte a organização.
Falta de condições nas prisões equatorianas
Entretanto, no Equador, “continuam a ser graves as preocupações com as más condições das prisões e a violência, o uso indiscriminado da força por parte dos organismos de segurança, as restrições no acesso à saúde reprodutiva de mulheres e raparigas e a reduzida proteção dos direitos de crianças e refugiados”.
A ONG defensora dos direitos humanos destaca a explosiva situação das prisões do país, que em 2021 viveram os episódios mais violentos da sua história, com sucessivos motins que fizeram 80 mortos em fevereiro, 119 em setembro e mais 68 em novembro.
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