A organização humanitária Médicos sem Fronteiras considera que obstáculos burocráticos em Moçambique estão a travar um reforço de ajuda humanitária urgente para Cabo Delgado, norte do país, que deve avançar de forma independente em relação às forças em conflito.
"São impostas restrições significativas à ampliação da resposta humanitária devido à insegurança em curso e aos obstáculos burocráticos que impedem a importação de determinados fornecimentos e à emissão de vistos para trabalhadores humanitários adicionais", lê-se em comunicado divulgado na quarta-feira, que cita Jonathan Whittall, diretor do departamento de análise dos MSF.
"Tendo regressado recentemente de Cabo Delgado, vi em primeira mão como a escala da resposta humanitária não corresponde de forma alguma à dimensão das necessidades", destaca aquele responsável.
O retrato surge depois de a Organização Internacional das Migrações (OIM) ter apelado a Moçambique, no final de abril, para a implementação de medidas que melhorem a assistência humanitária no norte do país.
"A OIM apela a um acesso humanitário total e a uma redução dos impedimentos burocráticos, incluindo a emissão de vistos [para especialistas da ONU], para garantir uma prestação oportuna e eficiente da ajuda humanitária", assim como "um maior e estratégico envolvimento com o Governo", referiu Laura Tomm-Bonde, chefe de missão da OIM em Moçambique.
A OIM estima que pelo menos 11.000 pessoas em fuga precisem de ajuda urgente (sobretudo comida e abrigo) às portas do projeto de gás suspenso em abril pela petrolífera Total, em Quitunda, distrito de Palma - além de outros quase 50.000 que já saíram para outros distritos, engrossando os 714.000 deslocados do conflito armado que opõe forças moçambicanas e rebeldes armados em Cabo Delgado.
"O atual foco no 'terrorismo' serve claramente os interesses políticos e económicos daqueles que intervêm em Moçambique", mas "não deve ser à custa de salvar vidas e do alívio do imenso sofrimento que o povo de Cabo Delgado enfrenta", sublinha Whittall.
Falando deste tipo de cenários noutros países como a Síria, Iraque ou Afeganistão, realça que designar um grupo como "terrorista" faz muitas vezes com que "os grupos em questão sejam empurrados ainda mais para a clandestinidade, tornando o diálogo com eles para acesso humanitário mais complexo".
"Embora os Estados possam alegar que não negoceiam com terroristas, os trabalhadores humanitários são obrigados a prestar ajuda humanitária de forma imparcial e a negociar com qualquer grupo que controle o território ou que possa prejudicar os nossos pacientes e funcionários", sublinha.
Os MSF justificam assim a necessidade de trabalharem de forma independente nestes cenários, para ganhar a confiança das partes e ter espaço de diálogo.
As operações de combate ao terrorismo "tentam colocar as atividades humanitárias sob o controlo total do Estado e das coligações militares que as apoiam" e nesse contexto "a ajuda é negada, facilitada ou prestada para aumentar a credibilidade do governo, para conquistar corações e mentes para a intervenção militar, ou para punir comunidades que são acusadas de simpatizar com um grupo da oposição", escreve no comunicado.
A situação prejudica "os mais vulneráveis" razão pela qual "organizações como os MSF precisam de ser capazes de trabalhar de forma independente".
"É nestas situações que temos visto muitas vezes hospitais destruídos e aldeias inteiras arrasadas em ataques que não conseguem distinguir entre alvos militares e civis. As comunidades estão muitas vezes presas entre a violência indiscriminada por grupos armados e a resposta contra o terrorismo por parte do Estado", conclui.
Grupos armados aterrorizam Cabo Delgado desde 2017, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo 'jihadista' Estado Islâmico, numa onda de violência que já provocou mais de 2.500 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e 714.000 deslocados, de acordo com o Governo moçambicano.
Um ataque a Palma, junto ao projeto de gás em construção, a 24 de março provocou dezenas de mortos e feridos, sem balanço oficial anunciado.
As autoridades moçambicanas anunciaram controlar a vila, mas o ataque levou a petrolífera Total a abandonar o recinto do empreendimento que tinha início de produção previsto para 2024 e no qual estão ancoradas muitas das expectativas de crescimento económico de Moçambique na próxima década.