Guerra Rússia-Ucrânia

Compreender o conflito: 18 inquietações de 18 meses de crime russo na Ucrânia

Putin já perdeu, mesmo que a Rússia mantenha parte do território. A Ucrânia resiste heroicamente -- mas até quando e à custa de quantas mais perdas? Como será a Reconstrução? E a convivência pós-guerra? Tantas dúvidas, um ano e meio depois do início da maior guerra em espaço europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Análise do comentador da SIC, Germano Almeida.
Alexey Furman

Germano Almeida

1. Vai a Ucrânia resistir como país soberano?

Não tem alternativa. Não tem país B. Quantas vidas isso vai custar? Quanto tempo vai demorar? O que acabará por exigir de perdas territoriais? Ninguém sabe. Um ano e meio depois, o número total de soldados mortos ou feridos, de ambos os lados, andará perto do meio milhão. As baixas militares da Rússia estarão a aproximar-se das 300.000. O número inclui cerca de 120.000 mortos e 170.000 a 180.000 soldados feridos. Do lado ucraniano, cerca de 70 mil mortos e entre 100.000 a 120.000 feridos. No campo de batalha, a superioridade eventual dos russos continua enorme. Há quase três soldados russos para um soldado ucraniano. No total, a Ucrânia tem 500 mil soldados -- os que estão no ativo, os que estão na reserva e as tropas paramilitares. A Rússia tem quase o triplo desse número, com 1.330.000 soldados no ativo. Mas a Ucrânia tem do seu lado o propósito e a força da razão. Chegará?


2. Faz sentido falar em ceder território?

Claro que não. Isso seria premiar o agressor e incentivá-lo a cobiçar outra parte do território ucraniano ou, quem sabe, até outros países vizinhos da Ucrânia. A busca pela paz tem que implicar uma solução justa e duradoura. Nunca poderá passar por ceder à Rússia uma parte da Ucrânia. Só a Ucrânia pode tomar uma decisão sobre as negociações com Moscovo para acabar com a guerra. Ou já perdemos a memória do que a Rússia de Putin fez em 2014, com a anexação da Crimeia e o início do conflito no Donbass? Ou em 2008 na Geórgia, com a Ossétia do Sul e a Abházia?

3. O que esperar da contraofensiva?

Sim, está a demorar. Sim, é completamente diferente do que aconteceu no verão passado. Mas não: não está perdida. As tropas ucranianas prosseguem a contraofensiva em três frentes de combate, estando a obter avanços na parte ocidental da região de Zaporíjia e na zona de fronteira da região de Donetsk-Zaporíjia, onde reconquistou a vila de Urozhaine, no eixo de Velika Novosilka; as forças ucranianas avançaram a nordeste de Robotyny (10 km a sul de Orikhiv), no oeste de Zaporíjia; a contraofensiva ucraniana está também em curso, rumo a Melitopol e Berdiansk, no eixo de Tokmak. Nas direções de Avdiivka e Marinka, a Ucrania estará a cnsguir conter o avanço, embora a custo, o avanço das tropas russas. Há dois grandes objetivos: cortar o corredor terrestre que os russos criaram desde território russo, passando pelo Donbass até ao mar de Azov (Mariupol – e não por acaso a Rússia transformou a posto militar com 40 mil efetivos o que era um mero centro logístico na cidade mártir tomada em abril do ano passado) e portos do oblast de Zaporíjia (Berdiansk e Melitopol). Para o fazer, as tropas ucranianas não precisam de chegar por terra e conquistar tudo até lá: fundamental será cortar as linhas logísticas das rotas de abastecimento russo. E isso, por consequência, mostram o segundo grande objetivo: tornar inviável a continuação da ocupação russa da Crimeia. O verão de 2023 ainda não revelou as conquistas que desejávamos para a contraofensiva ucraniana. Nem podia: sem dimensão aérea, nem um milagre as revelaria e a enorme proeza de Kharkiv (faz agora um ano) só seria repetida se os russos não tivessem aprendido com os tantos erros cometidos em 2022.

4. Quanto tempo mais vai durar esta guerra terrível?

Ninguém de boa-fé pode responder a isso neste momento. Mas há sinais preocupantes que nos indicam que os dois lados se preparam para, pelo menos, mais outro ano e meio de guerra. Três anos para a maior guerra em espaço europeu desde a Segunda Guerra Mundial? Vivida dia a dia parece muito, mas se a enquadrarmos na história de outras guerras territoriais desta dimensão, não é assim tanto. Zelensky assina decretos para mobilização geral e extensão da lei marcial na Ucrânia. Escolas superiores e profissionais russas vão formar operadores de drones. O primeiro ano da invasão de Putin mostrou-nos que a Rússia não vai conseguir ocupar a Ucrânia toda (a este ritmo, nem um século chegava). O grande problema é que o segundo ano de guerra -- que já vai a meio -- está a avisar-nos que a Ucrânia também não vai conseguir recuperar todo o território ocupado. Esta guerra é existencial para os dois lados: o agredido não tem alternativa que não seja resistir; o agressor ficou sem recuo possível (cometido o erro brutal da invasão maximalista, Putin não sobreviveria internamente se fracassasse na Ucrânia).

5. Pode a Ucrânia sonhar com a reconquista da Crimeia?

Ainda é cedo para dizer, mas os últimos sinais têm sido positivos. Pelo menos, tornar a ocupação russa da península algo de quase impossível de continuar. O recuo do turismo russo na Crimeia, os ataques às rotas de abastecimento terrestre da Rússia para a península. Como bem lembrou Marcelo na Plataforma da Crimeia, a integridade territorial da Ucrânia passará sempre por esta região onde, em 2014, a anexação ilegal feita pela Rússia abriu caixa de Pandora, que a invasão em larga escala de 24 de fevereiro de 2022 agravou dramaticamente.


6. Vão os EUA dar ATTACM e os alemães dar Taurus?

Tudo indica que sim – nos dois casos. Mas não deixa de parecer um processo excessivamente demorado, por muito que não seja fácil, internamente, para Biden e Scholz darem o ‘sim’ definitivo à cedência de mísseis de longo alcance. Washington e Berlim têm partilhado preocupações quanto ao uso deste tipo de armamento nas eventuais incursões da Ucrânia em solo russo. Uma reprogramação técnica que impeça tal tentativa pode vir a ser soluções de desbloqueio.


7. Quando chegam os F-16?

A Ucrânia vai receber pelo menos 61 caças F-16 ao abrigo do acordo com a Dinamarca e os Países Baixos, autorizado pelos Estados Unidos, após os pilotos ucranianos concluírem a formação. Zelensky esteve nos Países Baixos onde discutiu com Mark Rutte a questão dos caças; depois em Copanhega, onde recebeu boas notícias da primeira-ministra Mette Frederikssen. A Dinamarca vai enviar 19 caças F-16 para a Ucrânia, os Países Baixos 42. Em dezembro a Ucrânia deve receber os primeiros seis. Oito aviões de combate serão enviados para a Ucrânia durante o próximo ano e outros cinco serão entregues em 2025. Da Suécia chegarão a Kiev caças Saab JAS 39 Gripen.


8. Pode a Ucrânia entrar na UE? E na NATO?

Sim às duas perguntas – só não sabemos é quando. O futuro da Ucrânia será na União Europeia – e vice-versa: a UE só resistirá se desta guerra sair uma adesão da Ucrânia livre. Em que condições? Quando? Com que Ucrânia? Não sabemos. Quase o mesmo serve para responder à dúvida sobre a entrada na NATO. Mas com uma inquietação adicional: é tarde. Muito tarde. Se a Ucrânia tivesse entrado numa das etapas do alargamento a Leste, a Rússia não se teria atrevido a consumar a agressão em larga escala. O mal está feito.


9. O que vai acontecer à Rússia?

Na menos má das hipóteses, um progressivo isolamento internacional. Na pior das hipóteses, uma espécie de Coreia do Norte em ponto gigantesco, encravada entre a Europa (nessa altura já com a Ucrânia) e uma Ásia cada vez mais chinesa. O que restará a Moscovo? Ser um vassalo de Pequim. Tantos sinais nesse sentido: a humilhação em Jeddah, a confrontação em São Petersburgo por vários líderes africanos, a ausência forçada de Putin da cimeira dos BRICS na África do Sul (apesar dos lamentos do amigo Lula). À Rússia restará agravar a retórica de inversão, agressiva e rufia, do estilo Medvedev (constante acenar com a guerra nuclear). Internamente, os russos sofrerão economicamente com as sanções, politicamente com um regime opressivo. A escalada de preços com a queda do rublo e já estão a poupar nos produtos básicos: começaram a economizar no consumo de produtos básicos. Má fortuna.


10. Há riscos no alargamento da NATO a norte (Finlândia primeiro, agora Suécia)?

Para a Rússia há: Moscovo perde ainda mais centralidade, vê aumentar o espaço NATO nas suas fronteiras. Putin tentou invadir a Ucrânia para travar o alargamento da NATO a norte, acabou por provocar forte alargamento da NATO a norte. A Rússia não foi provocada: avançou para a invasão porque Putin quis. Só por isso. Os países do alargamento a Leste não aderiram à NATO para conspirarem um ataque a Moscovo: fizeram escolha livre e democrática. A agressão russa à Ucrânia provou que esses países tinham razão em sentirem-se ameaçados pelos devaneios imperialistas de Putin.


11. E se Trump voltar à Casa Branca?

E se na Casa Branca estivesse Trump? Talvez a Ucrânia já fosse uma espécie de protetorado russo. Biden está a fazer o correto na liderança ao apoio à Ucrânia -- mas não é de todo garantido que isso lhe renda ganhos eleitorais. Se os EUA voltarem a liderança isolacionista e de egoísmo nacionalista, Putin terá caminho livre. É o paradoxo temporal: ainda há guerra porque a Rússia falhou a blietzkrig dos primeiros dias, só que o prolongar do conflito por vários anos tenderá a favorecer o agressor. O relógio está a contar.


12. Vão os eleitores europeus fartar-se de apoiar financeiramente a Ucrânia?

Vamos acreditar que não. É na Ucrânia que se define a nova fronteira da Europa democrática. Como bem nos recorda Zelensky, Todos os países vizinhos "estão sob ameaça" se a Ucrânia não vencer a guerra. A opção de milhões de ucranianos de não fugirem nem se renderem vai definir o que vier a acontecer na maior guerra em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Não temos o direito de os deixar sozinhos na corajosa ambição de resistir a um agressor várias vezes mais forte. A Rússia não pode ganhar. Ponto. Se o fizesse, os autocratas sentir-se-iam autorizados a usar a força para atingirem os seus objetivos. Não podemos aceitar. É por isso que esta guerra não tem só a ver com a Ucrânia: tem a ver com todos nós. Vai a Europa estar à altura? O inverno de 2022, ao contrário do que Putin pensava, não nos quebrou. Mesmo com um cavalo de Troia (Orbán, claro) no nosso seio. Assim continuemos.

13. O que acontecerá a Vladimir Putin?

O erro colossal de optar pela invasão maximalista, em vez de cingir o conflito no Donbass, colocou-o num destino fatalista. Ou tem sucesso na Ucrânia ou cai. Não se vê como possa sair-se bem disto. Moscovo nega com palavras o que faz no terreno. Mais: inverte o ónus – acusa a Ucrânia dos crimes que os russos somam na invasão. É um universo orwelliano, em que a verdade é transformada pela linguagem, imposta à força pela lei do agressor. A Rússia é uma potência anacrónica e em decadência. Esconde a degradação pelo horror. O falhanço do Luna-25, a primeira missão russa à Lua em quase 50 anos, que colidiu com a superfície antes de alunar, foi símbolo poderoso disso. Dificuldades financeiras, problemas técnicos e a guerra na Ucrânia ditaram os sucessivos adiamentos da missão lunar.


14 – E agora, depois de Prigozhin?

"Putin não perdoa ninguém", lembrou Podolyak. Os soldados do grupo Wagner gravaram um vídeo na Bielorrússia em que prometem vingar a morte do líder grupo Wagner. “Há muita conversa agora sobre o que o grupo Wagner fará. Podemos dizer apenas uma coisa. Estamos apenas a começar, preparam-se”. Svetlana Tikhanovskaya, a líder da oposição bielorrussa no exílio, disse hoje que “não será sentida a falta” do líder do grupo Wagner na Bielorrússia. “Ele era um assassino e deve ser lembrado como tal”. O que terá acontecido? O avião foi abatido pelo sistema de defesa anti-aéreo russo. Uma fonte ligada aos serviços que estão a investigar a queda do avião disse ao jornal RBC que para já estão a ser consideradas todas as possibilidades, incluindo erro do piloto, problemas técnicos e influência externa. A mando de Putin? Talvez nunca o saibamos.


15. Ainda devemos temer as movimentações do grupo Wagner na Bielorrússia?

Depois das mortes de Prigozhin e Utkin, menos. Mas não se pense que o Grupo Wagner se ficará por aqui. Pode ter terminado como o conhecíamos, perante o desaparecimento do seu líder carismático, mas o modelo de negócio do Kremlin não estará preparado para abdicar dos “serviços” do grupo paramilitar em África ou na Síria. Pode é ser com outro nome e outro enquadramento legal. E, claro, com outras lideranças. Dias antes da queda do avião de Prigozhin, o Instituto para o Estudo da Guerra refere que os membros do grupo Wagner continuam a cometer crimes violentos após terem regressado à Rússia. E os Estados Unidos aconselharam os cidadãos do país que se encontrem na Bielorrússia a “partir imediatamente”, após indicação de a Lituânia ter encerrado postos fronteiriços com a Bielorrússia.


16. Resistiria a Europa a um grande triunfo russo na Ucrânia?

Claro que não. Porque isso teria significado que a Europa não esteve à altura do maior desafio com que se deparou desde a sua fundação. E porque à sua porta passaria a estar uma Rússia agressiva, engordada pela grande dentada na Ucrânia, ameaçadora perante outras cobiças neoimperiais. Escrevam isto mil vezes num quadro preto a giz: não é a Ucrânia que está em causa nesta guerra; é mesmo o futuro da Europa. Ou seja, é sobre o futuro de todos nós.

17. Não estaremos a falar há demasiado tempo de uma guerra que não é sequer perto de nós?

Não, não estamos. Esta é a grande questão do nosso tempo – a maior guerra em espaço europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Nunca, nas últimas oito décadas, houve uma guerra que tenha tantas implicações, ao mesmo tempo, em tantos pontos no mundo: mexe com equilíbrios políticos, sociais, diplomáticos, económicos, financeiros e até ambientais e religiosos. Um dos maiores desafios, ao fim de um ano e meio de guerra, é continuar a explicar ao grande público que não é sequer legítimo desligar, retirar importância, cair na banalidade. Todos os dias, no martirizado território ucraniano, há ataques a pessoas, a património, ao tecido económico. O futuro da Ucrânia está a ser comprometido há 18 meses seguidos. Cair na banalidade seria mais um crime, mesm que involuntário, que estaríamos a cometer contra os ucranianos. Como bem diz o Presidente Biden, as consequências da guerra "estendem-se bem além da Europa". “A Rússia já perdeu. Não consegue ir ao encontro do objetivo inicial. Não é possível…”

18. Como será o pós-guerra com uma Ucrânia destruída?

Estaremos a falar de um cenário demorado, imprevisível, provavelmente doloroso, tamanho já é o grau de destruição da Ucrânia depois de quase 550 dias de bombardeamentos russos. Mas há de chegar. Apresentará desafios tremendos e, claro, também algumas oportunidades. Pode ser, a partir de certo ponto, a grande história da próxima década: reconstruir o segundo maior país europeu em área, quinto maior em população – uma área imensa, que junta, num só país, as áreas de Alemanha, França e Bélgica. As conferências para a Reconstrução da Ucrânia já promovidas em Berlim, Paris e Roma indiciam os posicionamentos das três maiores economias da UE (Alemanha, França e Itália) na liderança desse complicado processo. Mas quando pode isso começar? Com que condições e sob que garantias de que o agressor russo não voltará a tentar? Como vão crescer as crianças e os jovens ucranianos que, por estes dias, crescem sob o sob dos mísseis cruzeiro russos e dos drones iranianos modificados? Como lidarão com os vizinhos russos, cujo regime lhes matou a família e destruiu as casas? Como imaginar essa vizinhança impossível?

Últimas