"Não há alternativa à velocidade; é da velocidade que a vida depende" (Zelensky)
Armamos a Ucrânia porque a é um desafio existencial para a segurança europeia. A Rússia não pode ganhar a . Não há plano B. Há que passar das palavras aos atos.
A Rússia não tem que ser derrotada, muito menos destruída ou esmagada: só tem que ser travada. Não foi a Ucrânia que invadiu a Rússia. Foi Putin que optou pela decisão delirante e irresponsável da via maximalista (invasão total, não incursão no Donbass).
Se a Ucrânia parar de se defender, a Ucrânia acaba; se a Rússia parar de atacar, a acaba. É esta a equação fundamental. Só quando compreendermos o seu verdadeiro alcance poderemos perceber como é decisivo ajudarmos a Ucrânia a sobreviver.
Dar carros de combate pesados à Ucrânia (Leopard 2 alemães; Challenger 2 britânicos; Abrams M1 americanos) não é escalar a . Muito menos provocar a Rússia. É reconhecer à Ucrânia, o agredido, o direito de se dotar de “paridade de fogo”.
O Kremlin já teve diferentes versões. Textos de 2021, entregues como “draft” para negociações, não deixam dúvidas: Putin quer regressar à arquitetura de segurança pré-1997, entende o alargamento como provocação. Ou seja: a questão não se cinge à Ucrânia.
Há um ano, o filósofo e historiador israelita Yuval Noah Harari escrevia na “Economist”: “Se voltar a ser normal e aceitável que as grandes potências possam amedrontar e ameaçar os seus vizinhos mais fracos, isso afetará a perceção de segurança e o modo como as pessoas, em todo o mundo, se comportam umas com as outras”. O crime russo na Ucrânia fez muita gente compreender o que está verdadeiramente em causa.
Há um ano, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, garantia: “As reservas de gás para a Europa estão asseguradas, mesmo num caso extremo de interrupção total de fornecimento russo”. O caminho feito a partir daí, não tendo resolvido tudo, foi notável: a EU reduziu de 40% para 7% a dependência aos combustíveis fósseis russo.
Há um ano, os Estados Unidos alertaram que a Rússia iria avançar para uma “full-scale invasion” à Ucrânia "a qualquer momento". Putin desmentiu e até quis disfarçar, anunciando retirado de militares na Crimeia e a norte, na Bielorrússia.
ERRO CRASSO
Muita gente gozou com os anúncios americanos e perguntou “a que horas começava a ”. Menos de uma semana depois, a começou mesmo. Putin cometeu o erro crasso de tentar uma invasão total da Ucrânia.
O cenário de negociações, até agora, não foi sério. Pressupostos para a paz, dos dois lados, são inconciliáveis. Putin quer uma paz do agressor. A paz da Ucrânia ser subjugada pela Rússia, abdicar de 20% do seu território. Ou seja: não é paz alguma.
Já a Ucrânia de Zelensky exige (e bem): retirada total das tropas russas; indemnizações de ; julgamentos de crimes de ; respeito pela carta das Nações Unidas; recuperar a Crimeia. Perante o comportamento de Putin, também não é realista.
Depois desta , acabe como terminar e dure o tempo que durar, a Europa não voltará a ser a mesma. O nosso espaço de segurança não voltará a ser o mesmo.
Fará toda a diferença saber se a Ucrânia sobrevive como estado soberano, sem a dependência da chantagem russa, podendo fazer as suas escolhas cruciais sobre alianças a adotar e instituições a aderir.
KIEV LUTA POR NÓS
Kiev está a lutar por nós, porque se a Ucrânia cair o poder bélico russo sentir-se-á empoderado a prosseguir a agressão para o “espaço pós-soviético”. O que acontecer na Ucrânia não ficará na Ucrânia. A “coligação Leopard”, cuja liderança finalmente a Alemanha assumiu, após semanas de hesitação, foi um bom exemplo do que está em causa. Scholz teve que esperar pelo conforto de Biden e só deu o “sim” ao envio dos carros de combate alemães (os seus e os reexportados por vários países europeus mais o Canadá) quando o Presidente dos EUA tomou a decisão corajosa e estratégica de contrariar a indicação do Pentágono e autorizar o envio de 31 Abrams M1.
Foi momento-chave no reforço da coesão do “Ocidente alargado” na travagem à Rússia. Mesmo com tantas “nuances” de interpretação (a França de Macron continua a jurar que o seu inimigo não é a Rússia), a verdade é que, quase um ano depois, a aliança anti-invasão russa da Ucrânia se mantém com meia centena de países. O apoio à Ucrânia soma 57% da riqueza mundial (ainda que apenas um quarto da população mundial).
Obstáculo atrás de obstáculo, os aliados continuam a encontrar respostas para o essencial. Os EUA, com Biden, reencontraram a vocação liderante das democracias liberais. O Reino Unido descobriu na resiliência ucraniana uma espécie de redenção ao disparate do Brexit (bizarro exemplo de autoimposição de sanções). A UE exibe notável coesão. O Japão viu na invasão à Ucrânia o crime russo que não quer experimentar em doses bem maiores com assinatura chinesa, no Indo-Pacífico.
PERIGOS E DESAFIOS
Os últimos anos foram de enormes desafios para a ordem internacional. A pandemia expôs fragilidades da China e, mesmo depois da emergência sanitária, criou disrupções nas cadeias de distribuição. A Guerra da Ucrânia poderia ter sido a estocada fatal (assim Putin o terá pensado): risco energético, volatilidade dos mercados, inflação galopante.
Os problemas estão lá, mas o quadro atual mostra-nos boas surpresas: os EUA estão a conseguir controlar a inflação e podem voltar a ter crescimento; o desemprego continua baixo dos dois lados do Atlântico.
A supremacia russa nos últimos dois meses (sem avanços impressionantes no terreno, mas com pequenas vitórias em Soledar, a leste, e ameaças de regresso ao sul, em Zaporíjia) e sobretudo os sinais de mobilização iminente para antecipar para março a “grande ofensiva” russa que se esperava só para abril levaram a um momento de retrocesso ucraniano.
Os receios de que esta subida de patamar na ajuda militar à Ucrânia possam “atiçar” o urso russo falham no diagnóstico: arriscada, sim, foi a demora. Não a decisão. Esperemos que não seja tarde.
FANTASIAS
A exemplo do que acontece no terreno de batalha, Vladimir Putin tentou disfarçar com quantidade a falta de qualidade que tinha para apresentar no discurso de terça-feira passada, na Assembleia Federal: foi uma intervenção de quase duas horas, autojustificativa, que quase nada revelou de novo. Toda a argumentação inicial remete para a narrativa de inversão já usada quando da cerimónia de anexação de Donestsk, Luhansk, Zaporíjia e Kherson, em setembro passado.
Nessa primeira fase do discurso, Putin atirou para o Ocidente e para os EUA as responsabilidades, as ações e as culpas que a verdade objetiva e factual só pode atribuir à atual liderança russa. O líder russo teve o desplante de afirmar isto, no seu monólogo delirante: “A culpa do conflito é toda dos líderes Ocidentais, foram eles que começaram a guerra e nós usamos a força para a travar”.
Não, Vladimir: não foram os EUA quem começou a guerra na Ucrânia – foi mesmo a Rússia. Não, Vladimir: não foram os EUA quem “mentiu descaradamente” sobre os motivos da invasão – foi mesmo a Rússia. Não, Vladimir: não foram os EUA que empurraram a Ucrânia para a guerra para destruir a Rússia – foi mesmo a Rússia quem atirou a Ucrânia para uma invasão totalmente ilegal, imoral e indecente. Não, Vladimir: não são os EUA que querem “uma derrota estratégica para destruir a Rússia” – é mesmo a Rússia que quer acabar com a identidade e soberania territorial da Ucrânia. Não, Vladimir: a Rússia “não queria sinceramente a paz”, quando apresentou aos EUA e à NATO, em dezembro de 2021, pressupostos totalmente inaceitáveis (para memória futura: exigia que a Ucrânia não tivesse o direito de querer entrar na NATO, exigia a retirada das armas nucleares dos países do flanco NATO que entraram nos alargamentos dos finais dos anos 90 e primeira década do século XXI).
Chega então o ponto da apropriação. Putin referiu-se à Ucrânia como se fosse dele (“queriam separar a Ucrânia do nosso território”). Como se não fosse um país com fronteiras reconhecidas internacionalmente, independente e soberano desde o início dos anos 90. “Lançaram ataques sobre o Donbass”, acusou, indignado, o líder russo. Como se o Donbass fosse da Rússia. Saudou as “quatro regiões”, referindo-se às anexações absolutamente ilegais de Donetsk, Luhansk, Zaporíjia e Kherson. Pediu às outras regiões russas que colaborem na “integração”.
Este foi, por isso, um discurso de dissimulação. Putin tentou projetar (para dentro da Rússia e para as capitais de aliados da Ucrânia, que transmitiam atentamente as suas palavras em direto) uma suposta noção de sucesso e triunfo que em nada confere numa breve monitorização do que se passa no terreno.
Quase um ano depois do início de uma guerra de agressão que imaginava vir a durar no máximo umas três semanas, Putin não tinha, sequer, uma grande conquista militar para apresentar. Esforçou-se por disfarçar, limitando objetivos, focando-se no Donbass e nas “regiões anexadas”.
E, por fim, a justificação. Putin quer reformar as forças armadas russas e entende que chegou a hora de apoiar as famílias dos combatentes (criação de um Fundo Estatal de apoio) e gerir o cansaço e a moral das tropas no terreno (duas semanas de férias com bilhetes pagos para ir a casa) – tudo sinais de que considera que a guerra (termo que nunca usou) está para durar (e ele sem vitórias militares para anunciar nesta data emblemática).
HIPOCRISIA
No cúmulo da hipocrisia, mostrou-se preocupado com a emissão de gases poluentes – ele que provocou uma guerra que, ela própria, é fator de agravamento dessas emissões e pelo desvio de atenções que criou no que toca à frente da emergência climática.
Jurou que a Rússia não está isolada, perorou sobre “os custos para a Europa das sanções que eles próprios impuseram”, apontou “novos mercados emergentes” para onde o foco de Moscovo cada vez mais se virará.
Acusou o Ocidente de não querer a Paz – mas não disse que espécie de paz proporá, se não abdica da presença de quase meio milhão de soldados russos em território ucraniano.
Repetiu a tecla, um pouco bizarra, do discurso moral sobre “a catástrofe espiritual” dos “comportamentos devassos” do Ocidente – possivelmente para marcar pontos em sensibilidades ultraconservadoras e extremistas que vão brotando nos EUA e na Europa.
E guardou para o fim a novidade mais assustadora: suspende a Rússia das negociações da renovação do novo Tratado START, lançando, de novo e com receios alargados, o medo nuclear.
Mais do mesmo – mas em versão prolongada e com alguns pormenores que refinam uma perversa hipocrisia que o define como agressor.
Levou resposta certeira do Conselheiro de Segurança Nacional da Administração Biden, Jake Sullivan: “Ninguém está a atacar a Rússia. Há uma espécie de absurdo na ideia de Putin”.
E enquanto isso, Joe Biden -- um dia depois de ter reforçado alinhamento com Zelensky em Kiev, em visita corajosa e profundamente simbólica (primeira vez que um Presidente americano em funções visitou cidade a ser bombardeada e primeira vez que esteve em zona de uma guerra onde não há tropas norte-americanas) – somou na Polónia a construção de uma aliança alicerçada no flanco Leste da NATO.
Sem argumentos válidos para rebater, Putin vai insistindo na narrativa fantasiosa.
Não se antevê que possa melhorar.