Guerra Rússia-Ucrânia

O impacto devastador da guerra na Ucrânia nas crianças "será sentido durante gerações"

A guerra na Ucrânia interrompeu a educação de mais de 5 milhões de crianças e, segundo um recente relatório divulgado pelos EUA, mais de 6.000 menores ucranianos terão sido levados pela Rússia para campos que se destinam à reeducação patriótica e militar. O impacto da guerra nas crianças ucranianas é devastador, dentro e fora do país.

Rapaz de 13 anos sentado no que resta da sua sala de aula na escola de Chernihiv. "Quando estou na minha sala de aula, penso em como quero tanto que a guerra termine", disse à Associated Press.
Emilio Morenatti/ AP

Elisa Macedo

Milhões de crianças ucranianas estão a sofrer as consequências de uma guerra brutal, precisam de assistência humanitária para satisfazer as necessidades básicas na Ucrânia, mas também nos vários países para onde muitas tiveram de fugir, num êxodo em larga escala como não acontecia desde a II Guerra Mundial.

As crianças que fugiram da guerra enfrentam maior risco de tráfico humano e as que ficaram continuam à mercê dos ataques impiedosos das forças russas. A guerra interrompeu a educação de mais de 5 milhões de crianças e, segundo um recente relatório divulgado pelos EUA, mais de 6.000 menores ucranianos terão sido levados para campos que se destinam à educação patriótica e militar pró-Rússia.

“Os impactos devastadores da guerra de Putin sobre as crianças da Ucrânia serão sentidos durante gerações”, realçou o departamento de Estado norte-americano, a propósito do relatório que revela que a Rússia envia crianças ucranianas para o que designa por campos de reeducação.

Quase um ano após o início da guerra na Ucrânia, as contas feitas pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) são dramáticas. Milhares de estabelecimentos de ensino foram danificados ou totalmente destruídos pela ofensiva russa, em muitos casos em áreas densamente povoadas. A guerra interrompeu a educação de mais de 5 milhões de crianças e, apesar dos esforços para retomar as aulas, muitas famílias recusam-se a mandar os filhos para a escola por questões de segurança.

A Agência da ONU para a defesa e promoção dos direitos das crianças está a trabalhar com o Governo ucraniano para que o regresso às aulas seja uma realidade.

Contudo, quando 2 milhões de crianças se preparavam para ter aulas online e 1,3 milhões estavam registadas para um sistema misto de ensino presencial e à distância, ataques a infraestruturas de fornecimento de energia comprometeram esse objetivo. Quase todas as crianças na Ucrânia ficaram sem acesso contínuo à eletricidade, o que praticamente impossibilitou o acesso a aulas online.


Por ocasião do Dia Internacional da Educação, a 23 de janeiro, a UNICEF renovou o apelo ao fim dos ataques a estabelecimentos de ensino e outras infraestruturas civis, nomeadamente de fornecimento de energia, para conseguir que as crianças possam pelo menos prosseguir os estudos à distância e continuar em contacto com colegas e professores.

Nos países onde há refugiados, a Agência da ONU pede que se dê prioridade à integração das crianças ucranianas nos sistemas nacionais de ensino, em especial na primeira infância e no ensino básico.

A UNICEF vai continuar a trabalhar com o Governo da Ucrânia e dos países de acolhimento para oferecer soluções para ajudar as crianças em áreas de conflito e aquelas que tiveram de deixar as suas casas, para que consigam prosseguir a sua educação”, referiu Afshan Khan, diretor regional da UNICEF para a Europa e Ásia Central, citado numa publicação divulgada no site da UNICEF no Dia Internacional da Educação.

As escolas fornecem uma sensação fundamental de estrutura e segurança para as crianças. A perda de aprendizagens pode ter consequências para toda a vida, alertou o responsável da UNICEF, sendo que o impacto do conflito vem agravar os dois anos de educação perdidos devido à pandemia de covid-19 e mais de oito anos de guerra para as crianças do leste do país.

“Não há botão de pausa. Simplesmente não é possível adiar a educação dos filhos, sem que dessa forma se arrisque o futuro de uma geração inteira”, sublinhou Afshan Khan.

A situação é preocupante tanto para as crianças na Ucrânia como para as que fugiram do país. A UNICEF estima que duas em cada três crianças refugiadas não estejam atualmente matriculadas nos sistemas de ensino do país anfitrião. Esta situação deve-se a algumas dificuldades nos locais de acolhimento, mas também ao facto de muitas famílias de refugiados optarem pelo ensino online na esperança de regressar a casa rapidamente.

Mais de 6.000 crianças em campos russos

Desde o início da guerra, milhares de crianças, incluindo bebés a partir de quatro meses, terão sido levadas para campos educacionais na Rússia. Ao todo serão 43 centros, instalados desde a Crimeia até à Sibéria, destinados à “reeducação patriótica e militar pró-Rússia”, revela o documento elaborado pelo Laboratório de Investigação Humanitária da Escola de Saúde Pública da Universidade de Yale, financiado pelo Departamento de Estado norte-americano.

Entre currículos escolares baseados na perspetiva ideológica pró-Moscovo, visitas a locais patrióticos e palestras de veteranos, as crianças também receberam treino militar, embora não haja provas de que estejam a ser levadas para a guerra, disse Nathaniel Raymond, co-autor do relatório da Universidade de Yale, que recorreu a entrevistas e recolheu diversas informações, provenientes nomeadamente de imagens de satélite.

O documento realça que o número de crianças enviadas para os campos na Rússia será “provavelmente significativamente maior” do que as 6.000 confirmadas.

“As evidências crescentes das ações da Rússia expõem os objetivos do Kremlin de negar e suprimir a identidade, a história e a cultura da Ucrânia”, referiu o Departamento de Estado norte-americano em comunicado, divulgado à comunicação social.

Vídeos publicados pelas autoridades regionais sob ocupação russa na rede social Telegram mostram, por exemplo, crianças nos campos a cantar o hino nacional e com a bandeira da Rússia.

“Em muitos casos, a Rússia pretendia receber temporariamente as crianças da Ucrânia sob o disfarce de um acampamento de verão gratuito, para depois se recusar a devolvê-las e impedir todo o contacto com as famílias”, disse em conferência de imprensa o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano. Ned Price explicou que o relatório fornere "detalhes sobre os esforços sistemáticos do Governo russo para realocar permanentemente milhares de crianças ucranianas para áreas sob controle russo por meio de uma rede de 43 campos e outras instalações".

O relatório indica também que o processo de adoção de menores ucranianos teria sido acelerado “desnecessariamente”, no que poderá constituir um crime de guerra. O documento cita assessores de Putin, nomeadamente Maria Lvova-Belova, assessora presidencial para os direitos das crianças, que teria anunciado a adoção de 350 crianças por famílias russas e que mais de 1.000 estariam a aguardar a confirmação do processo.

A embaixada da Rússia em Washington reagiu às conclusões do relatório através do Telegram. “A Rússia aceitou crianças que foram forçadas a fugir com as suas famílias dos bombardeamentos. Fazemos o possível para manter menores de idade em famílias e, em casos de ausência ou morte de pais e parentes, transferir os órfãos sob tutela”.

No entanto, o documento norte-americano sustenta que alguns pais foram obrigados a dar o conssentimento para o envio dos filhos para os campos na Rússia, que estariam a dificultar a recuperação das crianças, que só seriam libertadas se as famílias as fossem buscar.

“Uma parte significativa dessas famílias têm rendimentos baixos e não tem condições financeiras para fazer a viagem. Algumas famílias foram forçadas a vender pertences e viajar por quatro países para se reencontrar com os seus filhos”, constatou o relatório.

As autoridades da Ucrânia denunciaram recentemente que mais de 14,7 mil crianças foram deportadas para a Rússia e, algumas, exploradas sexualmente.

O investigador Nathaniel Raymond defende que a atividade russa “em alguns casos pode constituir um crime de guerra e um crime contra a humanidade”, enquadrada como sequestro de crianças e tratamento de civis durante a guerra, de acordo com a Convenção de Genebra.

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