Quando era treinador do Wigan, há mais de uma década, Roberto Martínez tinha na sala de casa um ecrã de 60 polegadas, sensível ao toque de uma caneta e ligado a um avançado software para analisar jogos de futebol. Acontecia ali um ritual sagrado, que se repetia a cada jornada, ao final de cada partida. Sentado no sofá, passava horas a rever todos os lances que já tinha assistido com os próprios olhos.
“A minha mulher adorou quando instalei o software”. “Ela compreende que eu preciso desse espaço e desse tempo antes de voltar a ser eu mesmo", explicou o treinador espanhol, numa história partilhada no livro "The Numbers Game”.
Cruzando este relato com outros, percebe-se que há uma linha ténue entre o que é a vida pessoal e a profissão do agora selecionador nacional. “Não devia chamar-lhe um trabalho, é uma paixão. Nasci com a ideia de viver através do futebol”, confessou Martínez no documentário “Whistle to Whistle”, da televisão britânica BBC.
"O futebol é a vida do Roberto. Quando tenho uma folga, admito, tiro o dia todo para não pensar em futebol. O Roberto, por outro lado, mesmo nas folgas vive e respira futebol", escreveu Jordi Cruyff, filho da lenda holandesa, considerado um “irmão” de Martínez - já lá vamos a essa parte da história - na autobiografia do selecionador, “Kicking Every Ball”.
Nascido na Catalunha, Martínez cumpriu cedo o sonho de criança, tendo sido jogador profissional em Espanha e no Reino Unido. Futebolista mediano, viu os esforços darem frutos muito maiores ao trocar as botas pelos quadros e softwares.
Em menos de 10 anos como treinador, saltou da terceira divisão inglesa para a seleção da Bélgica, a última paragem antes de aceitar, em janeiro de 2023, o convite de Portugal.
Bob, como também é chamado, impressionou quando, em bom português, anunciou a sua primeira convocatória na equipa das quinas. A nossa língua é apenas uma das várias que utiliza num mesmo dia. Fala em catalão com a mãe, Amor Montoliú, em castelhano com o pai, de quem herdou o nome, e em inglês com a mulher, a escocesa Beth Thompson, e as filhas, Luella e Safiana.
A família é, alias, a única coisa que está ao mesmo nível do futebol na vida de Roberto Martínez, que teve de chegar sozinho a Portugal, um período que recorda com dificuldade, mas que reconhece a importância.
“Foi importante estar sozinho. Precisava de conhecer os jogadores e de viajar muito”, admitiu no Alta Definição, da SIC, explicando que agora, já com a mulher e as filhas em solo lusitano, “não podia estar mais feliz com a mudança”. “Na minha vida sempre tive a família e a missão - a missão é sempre o futebol. (…) A minha esposa e as minhas filhas adoram Portugal, a vida no país, a escola. O dia a dia é de muita felicidade. Para mim é muito mais fácil”.
Sempre com um sorriso no rosto, o catalão rapidamente apresentou resultados: 10 vitórias em 10 jogos garantiram um apuramento imaculado para o Euro 2024, competição em que a Seleção Nacional chega como uma das grandes favoritas.
Padrinho do neto de Cruyff, nunca foi fenómeno com os pés
Martínez é um camaleão, na medida em que se adaptou a diferentes contextos ao longo da vida profissional e pessoal, mas é também fiel às suas convicções, não fosse ele um discípulo de Johan Cruyff e grande admirador de Pep Guardiola.
Nascido em 1973, numa localidade da Catalunha chamada Balaguer, Roberto viu de perto a chegada da cultura futebolística holandesa. Tinha 15 anos quando Cruyff assumiu o comando do Barcelona, em 1988, e apaixonou-se pelo jogo de posição praticado por aquela equipa, capitaneada pelo então jogador Guardiola.
Em 1995, conheceu Jordi Cruyff num restaurante em Inglaterra. Tornaram-se melhores amigos, passaram a viver juntos e, anos mais tarde, viriam a ser padrinhos dos filhos um do outro. “O meu pai [Johan] dizia que o Roberto é o irmão que nunca tive”, recordou Jordi ao Zerozero.
Desengane-se, no entanto, quem pensa que a carreira de Martínez foi ao nível dos seus heróis’. Bob deu os primeiros pontapés no clube da terra e transferiu-se para o Saragoça, aos 16 anos. Após várias temporadas na equipa B, estreou-se na liga espanhola em 1993, no último jogo da época, num empate com o Atlético Madrid, mas nunca teve continuidade na primeira divisão.
Ainda em Balaguer, licenciou-se em fisioterapia e abriu uma escola de futebol para crianças como alternativa ao serviço militar.
“The Three Amigos” e o salto para a Inglaterra
A vida mudou quando o presidente do Wigan Athletic ligou, em 1995. Dave Whelan, um visionário que comprara o clube naquele ano, entendia que precisava de jogadores formados em outras escolas, que privilegiavam maior registo técnico, para alterar a ideia de kick and rush – estilo de jogo direto, poucos passes e bolas longas – que marcou o futebol inglês durante muito tempo.
Assim, Whelan contratou três futebolistas espanhóis. Roberto Martínez, Jesus Seba e Isidro Díaz – os dois últimos viriam a jogar em Portugal – ficaram conhecidos como The Three Amigos, por causa do filme de comédia, com o mesmo nome, de Steve Martin. Dos três, o atual selecionador nacional foi o único a ter sucesso em Inglaterra.
Permaneceu no Wigan até 2001, ajudando o clube a subir à terceira divisão, e foi procurar novos ares. Jogou no Motherwell, da Escócia, no Walsall e no Chester City, de Inglaterra, e no Swansea, do País de Gales, onde uma nova oportunidade surgiu. Em 2007, aos 34 anos, Martínez deixou o meio campo rumo à área técnica.
“Difícil não era aceitar a proposta do Swansea. Difícil era pendurar as botas e deixar de jogar”, confessou o espanhol.
Antes de Klopp, Liverpool contactou Martínez
O impacto de Martínez foi imediato, garantindo o título da League One e o acesso do Swansea à Premiership [segunda divisão] logo na época de estreia, o que chamou a atenção de um velho conhecido: Dave Whelan voltaria a apostar no espanhol, agora para treinador do Wigan, clube que já estava na Premier League em 2009/2010.
Em quatro temporadas, evitou a despromoção em três e conquistou o primeiro título da história do Wigan: a FA Cup, a mais antiga competição do mundo do futebol. Foi no dia 11 de maio de 2013, contra o Manchester City, de Sérgio Aguero e Carlos Tévez. No duelo de Robertos, Mantínez derrotou Mancini e toda a gente ficou a conhecer o treinador nascido na Catalunha.
Apesar da despromoção na mesma temporada, Martínez despertou o interesse de muitos clubes da elite, incluindo o Liverpool, que chegou a reunir com o técnico, dois anos antes de apostar em Jurgen Klopp. Roberto ficaria na mesma cidade, mas noutro emblema.
O Everton pagou, no verão de 2013, dois milhões de libras pelo catalão, para substituir David Moyes. Uma vez mais, a primeira temporada foi um sucesso, com direito recorde de pontos do clube batido, o quinto lugar na Premier League e o bilhete para a Liga Europa.
No entanto, o 11.º lugar obtido nas duas épocas seguidas culminaram no fim da relação, um ano antes do fim do contrato. O futuro do treinador, acreditava a imprensa inglesa, continuaria a passar pelo futebol de clubes. A escolha de Martínez surpreendeu a todos.
Na Bélgica, recordes, glórias e desilusões
Seguiu-se a Bélgica, o reencontro com Lukaku (depois da parceria no Everton) e uma mudança de paradigma numa seleção repleta de talento. Kevin De Bruyne, talvez o símbolo maior daquela que é considerada a melhor geração de sempre da seleção belga, explicou o ‘efeito Martínez'.
“Acho que ele fez com que acreditássemos mais na nossa capacidade. Provavelmente, no Mundial e no Euro passado não acreditávamos na possibilidade de vencer, tínhamos menos confiança. Ele ajudou a construir o nosso potencial e aumentou o nosso rendimento. E quando estás preparado, queres chegar até ao fim”, disse o médio do Manchester City, antes da meia final do Mundial 2018, com a França.
Os comandados de Martínez foram derrotados pelos franceses, que viriam a ser campeões, mas aquela prestação no Campeonato do Mundo nunca será esquecida. No derradeiro jogo, a Bélgica bateu a Inglaterra e garantiu o terceiro lugar - melhor resultado de sempre da seleção em Mundiais - já depois de ter eliminado o Brasil, nos quartos de final.
O futebol ofensivo e de posse, numa formação com três centrais - quase sempre o 3-4-3, que tentaria implementar em Portugal - potencializou os principais jogadores e teve como resultado, na maioria das vezes, um jogo atrativo para o público e eficaz nos resultados. Antes do Mundial, aquela equipa, que se manteve como n.º1 do ranking da FIFA durante quatro anos, já tinha feito um apuramento quase perfeito, somando 28 pontos de 30 possíveis.
Os anos passaram e, após o Euro 2020, em que a Bélgica chegou a eliminar Portugal mas foi travada pela Itália nos quartos de final, veio a grande desilusão no Qatar. No Mundial 2022 não havia brilho nos olhos de De Bruyne, que, depois da vitória na estreia, fazia uma declaração antagónica com aquela, cheia de confiança, quatro anos antes.
“Estamos muito velhos. Acho que a nossa chance foi em 2018. Temos uma boa equipa, mas estamos envelhecidos e perdemos jogadores-chave”, atirou o craque, que ouviria, dias depois, uma possível resposta do central Jan Vertonghen, de 35 anos: “Acho que atacamos mal, porque os nossos avançados também estão envelhecidos”.
Se o ambiente era amargo, o resultado foi praticamente intragável: a Bélgica acabou eliminada na fase de grupos, vendo a Croácia e Marrocos avançarem para os oitavos. Na despedida do Mundial, Martínez anunciou o adeus definitivo da seleção.
“Foi espetacular. Foram seis anos em que conseguimos fazer tudo o que se quer fazer num clube, mas nós fizemo-lo numa seleção. Isso deixa-me muito orgulhoso. Adorámos a forma como a equipa jogou”.
“Portugal tem de ser uma equipa moderna”
Na mesma competição, Portugal foi eliminado nos quartos de final, pelo Marrocos, e Fernando Santos, campeão do Euro 2016, fechou um ciclo de oito anos na Seleção Nacional. Era o momento de virar a chave e a Federação Portuguesa de Futebol escolheu Roberto Martínez para o cargo - o terceiro estrangeiro a comandar a equipa das quinas.
“Portugal tem de ser uma equipa moderna”, afirmou o estudioso treinador, numa apresentação em que o português ainda não estava na ponta da língua, mas as ideias já eram claras.
“Portugal tem de ter flexibilidade técnica e aproveitar ao máximo o talento dos jogadores, ser uma equipa que tenha talento com bola e sem bola. Não acredito em sistemas, acredito em seres humanos que jogam futebol, e em ser taticamente flexível, nunca forçar um talento para se adaptar a um sistema”.
Sem romper com o passado, utilizando a mesma base de jogadores deixada por Fernando Santos, o espanhol foi cimentado as rotinas da equipa com uma tradicional linha de quatro defesas, mas nos primeiros jogos implementara um sistema de três centrais.
Ronaldo esteve no onze sempre que pôde, mas Diogo Jota, Félix, Gonçalo Ramos e Rafael Leão foram testados na órbita do capitão. Cancelo jogou tanto na direita como na esquerda. António Silva e Gonçalo Inácio ganharam minutos importantes ao lado de Rúben Dias, na ausência de Pepe. Opções.
Portugal não tem um onze inicial fechado, dentro de um grupo, esse sim, que esteve quase sempre fechado. Concorde-se ou não com a estratégia, Martínez tentou gerir a seleção numa lógica de clube e, na lista apresentada para o Euro, não houve espaço para surpresas - com a exceção, se quisermos, do "espalha-brasas" Francisco Conceição.
A geração justifica o favoritismo, o rendimento e os números também. Os amigáveis com a Croácia (este sábado, 17h45) e Irlanda (terça-feira, 19h45) são os últimos da caminhada que, embora pese os poucos adversários de peso enfrentados, deixa boas sensações para o Euro 2024, que começa no dia 14 de junho.