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Cuidados de saúde vitais no Iraque: “Experiências traumáticas requerem anos para sarar completamente”

A organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras está a garantir acesso gratuito a serviços de saúde em localidades do norte do país.

SIC Notícias

Médicos Sem Fronteiras

Como em todas as manhãs, o médico Ramah Essa Hassan chega à clínica da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Al-Abbasi, subdistrito da província de Kirkuk, no Norte do Iraque, para fazer consultas de seguimento a pacientes com doenças crónicas. Pelas 8:00 já há várias pessoas à espera que ele chegue. Este dia de trabalho do médico começa com uma paciente idosa com diabetes e hipertensão, a qual vai à clínica com frequência para fazer exames de rotina.

“E agora vamos testar o seu nível de açúcar no sangue, para vermos se a diabetes está sob controlo – se não estiver, ajustamos o tratamento”, explica o médico à paciente.

Nesta estrutura médica, Ramah Essa Hassan e um outro médico seu colega, Saif, recebem pacientes que procuram cuidados médicos para doenças não-transmissíveis (DNT) como a diabetes, hipertensão, asma, epilepsia e distúrbios psiquiátricos. Estas doenças requerem tratamentos médicos longos ou mesmo durante toda a vida e um acompanhamento próximo, para evitar que surjam complicações que podem resultar em situações críticas.

“Temos entre três mil a 3.500 pacientes em tratamento e que vêm regularmente às consultas na clínica de Al-Abbasi”, descreve Ramah Essa Hassan. “Junto com o Dr. Saif, vemos cerca de 50 a 60 pacientes, em média, todos os dias”, acrescenta.

Escassez de provisões e profissionais médicos

A MSF está a providenciar, desde 2016, acesso gratuito a serviços de saúde às pessoas que fugiram do distrito de Hawija no período em que a região esteve sob o controlo do grupo auto-denominado Estado Islâmico e, depois, durante os combates para a retoma da área, assim como de quem ali acabou por regressar e de quem não partiu.

De início a organização médico-humanitária ativou clínicas móveis nos locais onde eram recebidas as pessoas que fugiam de Hawija. Posteriormente, as equipas da MSF começaram a trabalhar em campos de deslocados internos, onde as comunidades em fuga se estavam a instalar – mas estes campos fecharam, desde 2020, na sequência de uma decisão do Governo federal. E as famílias que ali se encontravam viram-se forçadas a regressar às zonas de origem, em alguns casos tendo de enfrentar um novo deslocamento para outras regiões.

Muitas estruturas de saúde foram parcial ou totalmente destruídas durante os combates para retomar o controlo de Hawija das mãos do Estado Islâmico, pelo que as pessoas, ao regressarem a esta área, ficaram com reduzido acesso a muito necessários cuidados de saúde. Conforme as necessidades da população aumentavam – tal como aumentavam as lacunas na provisão de serviços de saúde –, a MSF alterou a natureza das atividades desenvolvidas para dar enfoque às DNT, a cuidados de saúde mental e a saúde sexual e reprodutiva.

Antes dos combates, o sistema de saúde em Hawija sofria já de escassez de provisões e de profissionais de saúde. Mas agora dar resposta às necessidades imensas nesta região é impossível, uma vez que diversas das estruturas que ficaram danificas continuam por restaurar ou não estão funcionais, além de que é exercida uma pressão adicional no sistema de saúde para dar resposta à população que ali regressa.

Frequentemente, as pessoas têm de fazer longas distâncias para aceder a uma consulta médica – porque as estruturas de saúde que lhes estão próximas não estão a funcionar ou têm falta de provisões e de pessoal, ou mesmo porque nunca existiram.

Resposta no limite das capacidades

“Atualmente, estamos a trabalhar na clínica de Al-Abbasi e no principal centro de saúde de Hawija que se situa na maior vila do distrito de Hawija. As nossas equipas prestam cuidados a sete mil pacientes com DNT, entre as duas estruturas, e a capacidade da MSF de dar resposta às necessidades está a chegar ao limite”, frisa a coordenadora médica da MSF no Iraque, Tetyana Pylypenko.

“Sabemos que as necessidades são muitas na comunidade, mas não podemos inscrever todas as pessoas que precisam de tratamento. Estamos a tentar manter uma boa qualidade dos cuidados administrados aos pacientes e haverá limitações se o número continuar a aumentar. Entre os desafios que poderemos enfrentar está o espaço limitado nas estruturas de saúde, desafios nos fornecimentos de provisões e a disponibilidade de profissionais”, explica.

Em colaboração com as autoridades de saúde locais, a MSF desenvolveu critérios específicos para o início dos tratamentos nas estruturas da organização médico-humanitária. As equipas da MSF concentram-se em prestar cuidados aos pacientes mais vulneráveis que precisam de tratamento urgente. E, em simultâneo, encaminham pacientes mais estáveis para o centro de saúde público mais próximo. Desta forma, consegue-se dividir a carga com a clínica pública e providenciar cuidados mais bem direcionados às necessidades dos pacientes.

Além disso, e ainda no principal centro de saúde de Hawija, as equipas da MSF prestam cuidados pré e pós-natais às grávidas e consultas de planeamento familiar, numa secção separada da clínica dedicada às DNT.

Acresce que no Hospital Geral de Hawija, a MSF presta apoio ao departamento de maternidade, ajudando as parteiras que chegam a assistir ali a 300 mulheres a terem o parto todos os meses. Nesta estrutura hospitalar, a organização médico-humanitária apoia a cada dia as parteiras a desenvolverem as suas capacidades nas salas de parto.

Tanto em Hawija como em Al-Abbasi, as equipas da MSF recebem pacientes não só das vilas maiores na região mas também de aldeias em redor e até mesmo de governorados vizinhos. As pessoas vão às estruturas de saúde da MSF sabendo que ali podem aceder a cuidados médicos gratuitos e de qualidade.

Anos para sarar traumas do conflito

Este projeto da organização médico-humanitária inclui também trabalhadores comunitários de saúde mental, que fazem visitas diárias às casas de habitantes de todo o subdistrito de Al-Abbasi, com o objetivo de sensibilizar as pessoas para a saúde mental e partilhar informação sobre os serviços prestados pela MSF.

É frequente encontrarem pessoas com sinais de ansiedade ou de stress, o que sugere a necessidade de lhes ser providenciado apoio psicossocial – estas pessoas são, assim, aconselhadas pelos trabalhadores comunitários a visitarem a clínica da MSF. E aí, conselheiros em saúde mental dão informações cruciais aos pacientes para que sejam mais capazes de compreender o seu estado de saúde e ensinam algumas técnicas e mecanismos de adaptação para ajudar as pessoas a superarem e a desenvolverem mecanismos de superação saudáveis.

“Os cuidados que prestamos têm de ter em conta as dificuldades e os constrangimentos pelos quais os pacientes passam nas suas vidas, assim como os traumas e o estado psicológico em que se encontram”, sublinha a chefe da equipa médica da MSF em Kirkuk, Annie Marie. “É por isso que mantemos os cuidados em saúde mental como parte essencial dos serviços que providenciamos, especialmente sabendo que, nos anos recentes, a população nesta região passou por várias experiências traumáticas que requerem anos para sarar completamente”, avança ainda a médica.

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