Esquecidos

Impactos da emergência climática na saúde humana 

As alterações climáticas foram já descritas como a maior ameaça global à saúde no século XXI, e a resposta às alterações climáticas oferece a maior oportunidade para proteger a saúde.

Sylvain Cherkaoui

SIC Notícias

Médicos Sem Fronteiras

Apesar de não ser uma organização ambiental, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) vê com cada vez mais frequência e clareza como a saúde dos pacientes que atende está intrinsecamente ligada à saúde do ambiente em que vivem. Por isso, a organização médico-humanitária defende que este é o momento para agir coletivamente face a esta emergência que não pode esperar mais por soluções e ação.

As provas científicas sobre as alterações climáticas são inequívocas e a magnitude das suas consequências não pode continuar a ser ignorada. Estas provas mostram que veremos temperaturas mais elevadas e subidas dos níveis dos mares e também mais frequentes e mais intensos eventos climáticos extremos como chuvas fortes, vagas de calor, ciclones, secas e cheias.

Algumas regiões no globo estão mais vulneráveis às alterações climáticas, como o Sul da Ásia e Pacífico, o Médio Oriente, o Sahel, a África Austral e a América Central. Em alguns países assistimos já a secas sem precedentes e a fogos florestais que os cientistas ligaram às alterações climáticas.

Médicos Sem Fronteiras na COP26

Pela primeira vez, a MSF participa com uma delegação na Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas. A COP26 é a 26ª cimeira realizada desde que a Convenção-Quadro da ONU sobre o clima foi formada, em 1994, e a COP mais importante desde Paris em 2015, quando os países se comprometeram a limitar o aquecimento global abaixo dos dois graus (preferencialmente 1,5 graus).

A COP26 é importante porque é aqui que os países vão apresentar os seus planos sobre o clima para alcançar aquele objetivo coletivo.

A MSF tem na COP26 o objetivo de observar, aprender e dialogar com outras organizações e entidades de saúde e de outros sectores. A mensagem da organização médico-humanitária centra-se na forma como os impactos da emergência climática na saúde se estão já a sentir nas populações mais vulneráveis. As organizações humanitárias respondem a crises independentemente das causas, mas os seus esforços – por si só – não conseguem compensar a falta de ação por parte dos líderes políticos. Apenas uma ação política concreta, para concretizar soluções que limitem o aquecimento global, pode evitar consequências humanitárias desastrosas.

A saúde planetária é crucial

Os impactos da emergência climática na saúde constituem já um fardo para muitas pessoas no mundo. Se não forem tomadas medidas urgentes para reduzir as emissões de gases de estufa, os impactos serão calamitosos. A MSF vê com enorme inquietude as consequências da emergência climática na saúde humana: as suas equipas estão já a dar resposta a situações que são exacerbadas pelas alterações climáticas, como o aumento de doenças infeciosas, secas e ciclones.

É também com preocupação que a organização médico-humanitária encara o potencial das alterações climáticas em causarem cada vez mais disputas pela água e por outros recursos, exclusão social e crises migratórias – e todos estes contextos aumentam os riscos de conflitos armados.

As emergências relacionadas com o clima são simultaneamente emergências de cuidados de saúde. A emergência climática não se limita aos ciclones e tufões catastróficos. É também sobre a propagação das doenças mortais que se seguem àqueles eventos, é sobre o aumento dos riscos de seca e de fome, é sobre as deslocações maciças de pessoas que têm de abandonar as suas casas, e muito mais. Os efeitos das alterações climáticas podem produzir emergências humanitárias colossais.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, as alterações climáticas podem afetar aspetos ambientais da saúde como o ar limpo, água potável, suficientes alimentos e abrigos seguros.

A MSF tem vindo a aplicar progressivamente uma lente de saúde planetária na sua resposta humanitária, o que significa que olha para a forma como o ambiente influencia o estado de saúde dos pacientes, desde os eventos climáticos extremos aos impactos mais a jusante como as deslocações de populações, conflitos armados e insegurança alimentar. A saúde planetária é a saúde da civilização humana e o estado dos sistemas naturais dos quais dependemos. A nossa saúde depende do bem-estar do planeta e o bem-estar do planeta depende de como agimos.

Impactos médicos da emergência climática

Equipas da MSF trabalham em alguns dos contextos do mundo mais vulneráveis ao clima, onde as pessoas vivem já sem acesso aos cuidados de saúde mais básicos. Estas populações são também as menos responsáveis pelas emissões que geram a crise climática – e, porém, são elas que arcam com o impacto dos seus efeitos.

Em muitos países onde a MSF trabalha, as equipas médico-humanitárias estão já a dar resposta a situações ligadas às mudanças ambientais. Nisto se inclui o aumento de doenças infeciosas como malária, febre de dengue e cólera, o qual resulta das mudanças nos padrões das chuvas e das temperaturas, assim como o aumento de doenças zoonóticas devido à cada vez maior pressão sobre o ambiente e mais frequentes eventos climáticos extremos como ciclones e furacões e desnutrição causada por secas.

Seca e insegurança hídrica

As secas colocam múltiplos riscos para a saúde, ameaçando os fornecimentos de água potável, o saneamento e a produtividade agrícola e pecuária, e aumentando os riscos de incêndios florestais. Consequentemente, as secas ampliam a insegurança alimentar e a desnutrição, o que pode levar à atrofia, definhamento e à morte de crianças.

Os atuais modelos de previsão indicam que as alterações climáticas vão exacerbar gravemente a escassez de água em todo o planeta.

A ONU anunciou este ano que Madagáscar estava à beira de enfrentar a primeira fome no mundo resultante das alterações climáticas. Três anos consecutivos de seca afetaram profundamente as colheitas e o acesso a alimentos nas regiões desérticas do Sul do país. E agravaram a chamada “estação magra” anual, causando uma crise aguda alimentar e nutricional. Em resposta, a MSF ativou um programa médico-nutricional para examinar e tratar comunidades nas quais se regista desnutrição aguda.

Eventos climáticos extremos

Segundo o relatório Lancet Countdown on Climate and Health 2020, as alterações climáticas desempenharam um papel em 76 cheias, secas, tempestades e picos nas temperaturas entre 2015 e 2020.

Em 2019, a MSF lançou uma operação maciça de emergência em Moçambique, na sequência das cheias devastadoras causadas pelo ciclone Idai. Algumas semanas apenas após este ciclone, e com as populações ainda a recuperarem do desastre, um segundo ciclone assolou o país numa mesma estação.

Foi a primeira vez na história que dois ciclones atingiram Moçambique numa única estação. A escala dos danos causados por estes dois desastres consecutivos foi uma chamada de alerta para a necessidade de preparação para mais ciclones tropicais de elevado impacto, enchentes costeiras e chuvas intensas ligadas às alterações climáticas, de acordo com a Organização Mundial Meteorológica, uma agência das Nações Unidas.

Doenças infeciosas sensíveis ao clima

Foi já demonstrado que temperaturas mais quentes, como as que estão associadas às alterações climáticas, aumentam a incidência de doenças relacionadas com a água e com os alimentos como as hepatites, gastroenterites virais e cólera. As alterações climáticas estão também ligadas à propagação de vetores de doenças infeciosas, incluindo mosquitos e carraças, resultando provavelmente no aumento de casos de malária, de febre de dengue e da doença de Lyme.

Nas Honduras, país que é considerado um hotspot das alterações climáticas, enfrentou-se em 2018 o mais grave surto de dengue que existiu no país nos últimos 50 anos, após uma prolongada época de chuvas. As equipas da MSF trataram mais de cinco mil pacientes, maioritariamente crianças com menos de 15 anos residentes em zonas urbanas pobres, durante aquela epidemia.

Surtos graves de dengue afetam a maioria dos países nos continentes americano e asiático e a doença é uma das principais causas de hospitalização e de morte nestas regiões. A incidência de dengue aumentou drasticamente nas décadas recentes, parcialmente devido ao aumento das temperaturas e à associada propagação da espécie de mosquito que transporta e propaga a doença. A Organização Mundial de Saúde estima que metade da população mundial se encontra presentemente em risco, calculando entre 100 milhões e 400 milhões de infeções todos os anos.

As equipas da MSF observaram picos de casos de malária em diversos países subsarianos em comparação com as médias de longo-prazo, e os dados sugerem que a incidência e a prevalência da malária irão aumentar, especialmente em África. A organização médico-humanitária testemunha, com preocupação, que estão a registar-se casos de malária em regiões onde os mosquitos não estavam antes presentes, como nas Terras Altas da Etiópia.

Migrações climáticas e deslocações populacionais

As alterações climáticas estão a influenciar cada vez mais a mobilidade humana, conforme mais locais se tornam inabitáveis. Milhões de pessoas estão atualmente a deslocar-se e as condições que criam essas deslocações serão provavelmente exacerbadas pelas alterações climáticas.

É estimado que a maior parte das migrações relacionadas com o clima ocorra dentro das fronteiras dos países e em direção a áreas urbanas, onde as pessoas poderão confrontar-se com o desafio de viver em zonas de grande precariedade, sobrelotadas e insalubres.

Até 2050 é esperado que 2,5 mil milhões de pessoas se juntem aos aglomerados urbanos, com 90 por cento deste aumento a ocorrer na Ásia e em África.

Regiões onde se vivem fortes choques climáticos são frequentemente habitadas por comunidades populacionais densas e empobrecidas. Estes hotspots incluem vastos deltas de rios no Sul asiático, zonas semiáridas em África e o Médio Oriente, bacias glaciares e fluviais na Ásia Central, ilhas de baixa altitude e regiões costeiras vulneráveis à subida dos níveis dos mares, e áreas cada vez mais afetadas por eventos climáticos extremos como na América Central, nas Caraíbas e no Pacífico.

A MSF tem operações em larga escala em vários destes hotspots climáticos e dá resposta continuamente a deslocações populacionais causadas por tempestades, cheias e secas, incluindo no Haiti, Bangladesh, Nigéria, Somália e Iémen.

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Esquecidos é um projeto da SIC Notícias e da Médicos Sem Fronteiras que dá espaço aos que vivem situações de vulnerabilidade. Histórias de quem fica marcado por conflitos armados, catástrofes, migrações ou falta de acesso a cuidados de saúde. Testemunhos de quem é quase sempre silenciado. Muitas vezes esquecido.

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