Mahsa Amini morreu há precisamente um ano. O povo do Irão saiu à rua contra a violenta morte da jovem curda por não usar de forma correta o hijab, uma das normas mais restritas da República Islâmica. A revolta popular foi reprimida durante longos meses pelas autoridades. Morreram centenas de pessoas, foram detidas milhares, enquanto os protestos iam além-fronteiras e, por todo o mundo, surgia uma onda de solidariedade. Mas o que se sabe sobre a trágica morte? Um ano depois, que Irão encontramos?
O que aconteceu a Mahsa Amini?
Tinha 22 anos. Ia entrar na universidade. Tinha uma vida pela frente. Natural de Saqez e em Teerão de visita, usava o véu, mas parte do cabelo estava à vista. Mahsa Amini morreu sob custódia da polícia da moralidade, no dia 16 de setembro de 2022, três dias depois de ter sido detida. A polícia alega que a jovem ia ter apenas "uma hora de reeducação" por usar mal o véu.
Depois da detenção, o que aconteceu entre quatro paredes não é claro. Ataque cardíaco? Desmaio? Quebra de tensão? Violência? As versões são contraditórias. Militares da oposição dizem que ficou ferida na detenção. A polícia iraniana desmente maus-tratos. Foi também isso que garantiu o embaixador do Irão em Portugal, Morteza Damanpank Jami, numa entrevista em exclusivo à SIC, em dezembro de 2022.
Uma organização médico-legal divulgou um relatório que conclui que a morte de Mahsa Amini não foi provocada por "golpes na cabeça ou órgãos vitais". De acordo com o documento, morreu na sequência de uma cirurgia a "um tumor cerebral quando tinha oito anos".
"Perdeu subitamente a consciência e desmaiou (...). Sofreu uma perturbação do ritmo cardíaco e uma quebra de tensão", refere a entidade iraniana.
Apesar da transferência para o hospital, a jovem de 22 anos morreu. O calendário marcava 16 de setembro de 2022.
A organização médico-legal fala em "falha de múltiplos órgãos motivada por uma hipóxia cerebral". A polícia alega ataque cardíaco. Mas a família garante que estava de "perfeita saúde" e que não tinha problemas cardíacos.
No Irão, é obrigatório as mulheres cobrirem o cabelo em público com o tradicional véu, símbolo de castidade e submissão. É uma das normas mais restritas, impostas desde 1979. Com um código de vestuário rigoroso, a polícia da moralidade está também "de olho" nos casacos curtos, nas calças justas e com buracos e nas roupas coloridas.
O que aconteceu depois da morte de Mahsa Amini?
A morte foi comunicada ao mundo no dia 16 de setembro. No dia seguinte, o Irão “acordou” diferente. Na cidade natal de Mahsa Amini, Saqez, no Curdistão, começaram os protestos que alastraram a todo o país e, depois, além-fronteiras. Não um dia, não dois, mas durante meses.
Os manifestantes pediam o fim do regime teocrático, a "República Islâmica", fundada em 1979, pelo Ayatollah Ruhollah Khomeini, autoridade religiosa xiita iraniana e líder espiritual.
Os protestos no Irão, com muitas mulheres e jovens na linha da frente, que foram já considerados os maiores desde as manifestações contra os preços dos combustíveis, foram reprimidos com violência constante, tortura e até morte.
Sob forte repressão estatal, morreram centenas de pessoas, foram detidas milhares. Pelo menos quatro foram enforcadas, uma delas em público, diretamente ligadas aos protestos em massa. Há dezenas no corredor da morte que arriscam esse fim.
Em 2022, foram executadas mais de 580 pessoas, o número mais elevado da República Islâmica desde 2015. Organizações de direitos humanos denunciaram a "maquina assassina" destinada a "incutir o medo".
Houve severas restrições no acesso às redes sociais e, para um controlo mais apertado às mulheres, foram instaladas câmaras de vigilância em locais públicos. Se não usarem o hijab ou o utilizarem mal, são identificadas, avisadas e introduzidas no sistema judicial.
A repressão estendeu-se também aos jornalistas, que foram impedidos de fazer o seu trabalho durante os protestos. Cerca de uma centena foi detida e interrogada. As jornalistas iranianas Nilufar Hamedi e Elahe Mohammadi foram disso exemplo. Estiveram em risco de ser condenadas à pena de morte por divulgarem o caso de Mahsa Amini. Também a jornalista Nazila Marufian foi presa, depois de entrevistar o pai da jovem. Alguns jornalistas ainda se encontram atrás das grades.
Durante meses, houve uma onda de intoxicações por gás no Irão. Começaram em novembro, em escolas e liceus. Cerca de cinco mil alunas de 230 escolas foram intoxicadas. Relataram dores de cabeça, palpitações, náuseas e tonturas. Os envenenamentos aumentaram a tensão no país, com manifestações a pedir a "morte" do líder supremo, Khamenei, e os pais a relacionar os casos com a revolta social após a morte de Mahsa Amini.
Um Irão que vive debaixo de revoluções
Mais de quarenta anos depois da Revolução Islâmica, que derrubou o Xá da Pérsia, o Irão vive há um ano uma (nova) revolução. Mas nas décadas que se seguiram à instauração do regime teocrático foram várias as manifestações populares.
1979
É preciso recuar mais de 40 anos até ao Governo de Mohammad Reza Pahlavi para lembrar um dos maiores protestos no Irão.
Em tempos de pobreza e repressão política, sob um regime monárquico, nas ruas de Teerão estiveram, em 1979, mais de dois milhões de pessoas. Nos protestos conduzidos pelo Ayatollah Ruhollah Khomeini morreram mais de dois mil manifestantes e milhares foram detidos.
Nesse mesmo ano, foi implementada a República Islâmica.
1999
Vinte anos dois, mais um protesto e, consequentemente, violentos confrontos, com os universitários a pedirem reformas imediatas. Em causa estava a repressão política. A polícia invadiu o dormitório da universidade, espancou estudantes e um deles morreu. Pelo país surgiu uma onda de revolta. O Irão ficou dividido: de um lado os apoiantes do Presidente liberal Khatami, do outro os apoiantes do Ayatollah Khomeini.
2009
Em 2009, o "Movimento Verde" pediu a anulação da contagem de votos por uma alegada fraude nas eleições. Os manifestantes estavam contra o Presidente Mahmud Ahmadinejad, que tinha vencido Mir Hossein Mousavi com dois terços dos votos.
Morreram cerca de 100 pessoas e quatro mil foram detidas.
2019
Com o aumento do preço dos combustíveis, saíram às ruas, um pouco por todo o país, cerca de 200 mil pessoas, que foram afastadas por gás lacrimogéneo, canhões de água e até balas reais. Foram detidas sete mil e mais de 300 morreram.
O acesso à internet esteve condicionado durante uma semana para impedir a disseminação de informação sobre os protestos.
2022
Além dos massivos protestos por todo o país, várias personalidades (dentro e fora do Irão), do desporto ao cinema, manifestaram-se contra a morte violenta de Masha Amini, homenagearam a jovem e desafiaram o código rígido do Irão.
Os jogadores da seleção nacional homenagearam a jovem num jogo do Irão contra o Senegal para o Mundial 2022. Cantaram o hino de casacos pretos vestidos com o emblema tapado.
Mais arriscado foi o que Elnaz Rebaki fez: desafiou o regime iraniano ao participar num torneio de escalada na Coreia do Sul sem usar o hijab. À semelhança de Elnaz, Sara Khadem participou num torneio de xadrez sem o véu. Com medo de represálias, os planos eram mudar-se para Espanha com a família.
Já a atriz e ativista Taraneh Alidoosti foi detida por apoiar os protestos. No Instagram, mostrou-se solidária com um homem, Mohsen Shekari, executado por alegados crimes nos protestos. A "estrela" do filme vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (2017) "The Salesman" foi detida uma semana depois da publicação.
Hengameh Ghaziani e Katayoun Riahi, outras duas atrizes do Irão, também foram detidas por "incitamento" às manifestações.
Até a sobrinha do líder supremo do Irão, Ayatollah" Ali Khamenei, pediu ao mundo para cortar laços com Teerão. Farideh Moradkhani acabou detida, pela segunda vez no mesmo ano (2022), pelo seu ativismo. Ela e outros membros da família opõem-se há décadas a Khamenei.
Fora do Irão, mais de 50 celebridades francesas, como Juliette Binoche, Marion Cotillard, Isabelle Huppert, cortaram o cabelo. Quem também o fez foi Abir Al-Sahlani, eurodeputada que nasceu no Iraque, num discurso no Parlamento Europeu.
No Afeganistão, 25 mulheres apoiaram os protestos ao se manifestarem, durante 15 minutos, em frente à embaixada do Irão em Cabul. De óculos escuros e máscaras cirúrgicas, taparam os rostos. "Mulher, vida, liberdade" e "Diga não à ditadura!" foram gritos de ordem. Só dispersaram quando homens armados dispararam para o ar. Os talibãs ordenaram aos jornalistas que apagassem vídeos e fotos do protesto.
Cmo está o Irão um ano depois?
A Organização das Nações Unidas (ONU) fez história ao expulsar o Irão da Comissão sobre o Estatuto da Mulher, com "efeito imediato".
A repressão é vivida (e sentida) nas ruas.
Um ano depois, a polícia da moralidade voltou ao ativo. Já o Presidente iraniano proclamou, em agosto, o fim da ausência do véu islâmico. Considera que as mulheres que não usam o hijab são “umas inconscientes”
No início de 2023, em apenas um mês, tinham sido executadas mais de 50 pessoas. Por essa altura, 107 corriam o risco de serem executadas devido à participação em protestos.
As mulheres são controladas e identificadas por câmaras de vigilância em locais públicos e perdem cada vez mais direitos, como trabalhar e o acesso a bancos, transportes públicos e universidades.
Os jornalistas que revelaram e investigaram a morte de Mahsa Amini estão a ser vítimas de uma "repressão aterradora", denunciou a Repórteres Sem Fronteiras (RSF),
Com o 16 de setembro a aproximar-se, a República Islâmica aumentou a repressão no último mês. Os principais alvos são os rostos dos protestos após a morte de Mahsa Amini. Foram detidos ativistas e familiares de manifestantes assassinados.
Há duas semanas, um jornal digital considerado próximo da fação reformista foi bloqueado.
O Governo prepara ainda um pacote legislativo que aumenta a repressão sobre as mulheres: prevê penas de prisão até 10 anos para as que não usarem o véu islâmico, além de chibatadas e multas. A cineasta e ativista Mozhgan Ilanlu foi condenada a quase 10 anos de prisão e 74 chicotadas por publicar fotografias em que não usava o véu.