Cultura

Cannes: ficções ou documentários?

Numa bela edição do Festival de Cannes, o domínio das ficções não impediu a presença de alguns magníficos trabalhos documentais.

"Les Herbes Sèches", de Nuri Bilge Ceylan: uma ficção pontuada por elementos de natureza documental

João Lopes

Depois de onze dias de Festival de Cannes (o palmarés será anunciado ao fim da tarde de sábado, dia 27), lembremos uma evidência histórica: esta é, de facto, uma das montras globais das ficções cinematográficas. O certo é que isso não exclui o reconhecimento de que o género documental continua a ocupar espaços importantes no festival, inclusive na competição para a Palma de Ouro, ou ainda, por exemplo, no espaço Cannes Classics (através de vários trabalhos de investigação sobre as memórias do cinema)

Este ano será inevitável destacar a presença do monumental “The Youth”, do cineasta chinês Wang Bing, na secção competitiva. Trata-se de uma visão documental de um universo juvenil (tal como refere o título internacional) que demorou nada mais nada menos que cinco anos a concretizar: uma equipa com três câmaras acompanhou o quotidiano dos jovens que, longe das suas origens rurais, se empregam em fábricas de roupa, procurando melhores ordenados… É um exemplo notável de como o cinema pode ser uma “máquina” de observação e compreensão de uma realidade de muitas e contrastadas componentes humanas.

Vale a pena acrescentar que outro dos grandes filmes incluídos na secção competitiva — “Les Herbes Sèches”, do turco Nuri Bilge Ceylan —, sendo uma ficção hiper-elaborada sobre um professor numa região remota da Turquia (com um inverno cheio de neve…), não deixa de possuir elementos de natureza documental. Aliás, curiosamente, esses elementos decorrem também do facto de a personagem central praticar a fotografia (tal como o próprio Ceylan).

Dito isto, vale a pena acrescentar que há pelo menos dois títulos — “Il Sol dell’Avvenire”, do italiano Nanni Moretti, e “Perfect Days”, do alemão Wim Wenders — que possuem um forte apelo universal, resultante do carácter paradoxal das suas histórias. No primeiro, seguimos as atribulações de um cineasta (interpretado pelo próprio Moretti) que tenta fazer um filme sobre memórias do Partido Comunista italiano, em 1956, quando as tropas soviéticas esmagaram a Revolução Húngara; no segundo, descobrimos as rotinas quotidianas de um empregado de limpeza, em Tóquio (e quase pafrece um documentário…), que acaba por erevelar outros interesses inesperados, incluindo as canções de The Animals, Patti Smith ou Lou Reed — o título do filme provêm da canção “Perfect Day”, de Lou Reed [veja-se e ouça-se o respectivo trailer].

Entre as desilusões de Cannes registe-se… um grande filme: “Cerrar los Ojos”, do espanhol Víctor Erice. Porquê desilusão? Porque este regresso de Erice (depois de mais de dez anos sem filmar), centrado num actor de cinema que desaparece misteriosamente, merecia, no mínimo, concorrer para a Palma de Ouro… Ficou-se pela secção paralela, extra-competição, de títulos em ante-estreia — esperemos que não demore a chegar aos ecrãs portugueses.

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